Waves (2019)
- Iury Salk Rezende
- 26 de fev. de 2020
- 11 min de leitura
Waves (2019) de Trey Edward Shults.
Filme magnífico, um dos melhores de 2019. Completamente esnobado pelas premiações como o Oscar, assim como foi com alguns filmes produzidos pela A24, como Midosmmar e O Farol. Sem dúvida a A24 não tem o poder econômico e estratégico midiático capaz de divulgar e montar sessões para os membros da Academia e de outras premiações. Infelizmente o Oscar, Globo de Ouro, Bafta são premiações que privilegiam filmes, na maioria elitistas, voltados para um mercado mais comercial e produzidos pelas majors da Indústria. Um filme como 1917 (2019) que considero absolutamente desprezível no conteúdo teve espaço, visibilidade, distribuição e foi largamente premiado, enquanto obras primas intimistas, autorais, humanistas e de gênero diversificado como os três filmes que citei não são nomeados.
Waves começa com um casal alegre e apaixonado, dentro de um carro que percorre uma rodovia, em um belo dia ensolarado. A câmera rodopia vertiginosamente em volta deste casal que até me provocou tonturas (assisti o filme no telão, que reforça esta sensação vertiginosa). Este movimento de câmera incomum tem um significado importante no filme, porque será repetido na 2ª metragem, com outro casal, mas com movimento não tão rodopiante e rápido como nesta cena. A trama esta centrada em uma família de cor, de classe média alta e obstinada com o trabalho e com o futuro dos filhos. O personagem-guia que conduz o público é um jovem estudante, interpretado por Kevin Harrison, que divide suas atenções com o esporte (luta romana) e o levará a uma excelente Universidade com Bolsa Integral. Também esta absorvido pela sua bela namorada latina e uma relação com o pai autoritário, que cobra e treina musculação com ele obsessivamente. Ele respeita o pai que o sufoca com cobranças constantes. Esta vigília paterna assombra o dia-a-dia do jovem, que quer dar continuidade e manutenção a sua vida de alto conforto material, sucesso na sua prometida carreira, até mesmo como atleta e sua relação com sua bela e sexy namorada, que o vê como um futuro provedor bem sucedido. Sua vida parecia ser perfeita (nos moldes de uma sociedade materialista como a nossa) se não fossem as constantes pressões inerentes nesta busca obsessiva pelo sucesso (para o estadunidense ou você é bem sucedido, rico e prestigiado, ou você é um loser, perdedor, fracassado).
Em uma determinada cena bem no início do filme, a família vai até a Igreja e o Pastor faz um belo sermão sobre como a nossa sociedade esqueceu do amor, e vivemos uma relação em que o ódio e a ganância domina (naturalmente este pastor e Igreja não fazem parte da massiva Teologia da Prosperidade e Fundamentalista, mas sim genuinamente cristã). O pastor disse que perdemos a noção do amor ao próximo e que tínhamos que voltar ao espírito da aldeia que tem compromisso de criar e cuidar de todas as crianças e este amor coletivo seria um modelo a ser propagado pelo mundo (assim com nas sociedades indígenas em que todo o coletivo da aldeia adota e cuida de todas as crianças). Durante o sermão o jovem protagonista esta distraído e conversando e rindo com a mãe, no que acaba irritando o pai com este comportamento evasivo.
Mais tarde, o jovem atleta procura um ortopedista para investigar sobre uma constante dor no ombro. Ele recebe um ultimato do médico dizendo que não poderia mais treinar e praticar esporte, devido uma condição congênita. Para o jovem era como uma sentença de morte para o seu mundo de prestígio, sua passagem para a universidade com Bolsa Integral, futuro como desportista, estima de sua comunidade, colegas e principalmente com o seu Pai (que muitas vezes sublimam com transferência da áurea de sucesso e juventude dos filhos), além de sua namorada.
Para citar: “Pouca tragédia é bobagem”, sua namorada revela que esta grávida. Ele a convence a ir até a uma clínica de aborto. Na clínica, que estava vigiada sobre protestos de manifestantes fascistas anti-aborto, ela acaba por decidir em ter o filho (talvez coagida pela sua criação hipócrita-religiosa de sua comunidade e família latina). O clima e cumplicidade entre o casal desmoronam e a garota (Alexa Demie, que também trabalha na excelente série da HBO Euforia) resolve terminar o namoro.
O jovem passa a viver um torvelinho de queda e mal comportamento. Ele passa a se enrijecer como pessoa. Como é constantemente cobrado a ter uma vida estóica, de treinos e estudos pelo pai, uma falta de diálogo também com a mãe (adotiva), que é igualmente workaholic, ele passa ater um comportamento agressivo com eles. Também passa a fazer investidas pelo celular, na tentativa de recuperar o namoro, mas com toxicidade machista. Os seus treinos ficam mais violentos, tratando seus oponente como mulherzinhas, e mergulhando sua angústia e desolação no álcool e drogas, nas reuniões com amigos, cantando rap chauvinista, boçal e agressivo cheio de ódio, como se fosse um homem das cavernas (Esta cena se passa na praia, a noite, em volta de uma fogueira, com vários rapazes gritando, cantando e dançando como um ritual de potencializarão tribal ancestral) .
Neste momento da película sentimos o mito da Roda da Fortuna girar a sorte do personagem para baixo, jogando-o para o inferno pessoal até a uma anunciada tragédia.
Após a tragédia (que não vou comentar) o filme dá uma guinada que se repete em uma cena muito parecida com a primeira. A irmã gêmea de nosso personagem-guia, interpretada pela bela e jovem atriz Taylor Russell, de Lost in Space, esta com seu namorado viajando em uma rodovia e novamente a câmera faz um movimento em espiral em volta do casal, só que desta vez a câmera passeia de forma lenta e gradual até estabilizar nas convenções do plano contra-campo, onde o casal discute sobre a música que estão ouvindo: What a Difference a Day Made (Dinah Washington). A música era a canção favorita de seus avós, que pelo relato da jovem, remetiam a momentos de alegria e amor entre o idoso casal quando dançavam graciosamente na frente dos netos. Esta canção já tinha sido apresentada em outra cena, entre a mãe (adotiva) e o rapaz, e parecia ser como um mantra para evocar a felicidade e paz entre a família. A letra traduzida é assim:
“Que diferença um dia fez, 24 pequenas horas; Trouxe o sol e as flores onde costumava haver chuva Meu dia anterior era triste querida; Hoje, sou uma parte de você querida; Minhas noites solitárias acabaram querida; Desde que você disse que era minha; Oh, que diferença um dia fez Há um arco-íris diante de mim O céu acima não pode ser tempestuoso; Desde aquele momento de felicidade, aquele beijo emocionante; É o paraíso quando se encontra romance no seu menu; Que diferença um dia fez; E a diferença é você, é você Meu dia anterior era triste querida; Hoje, sou uma parte de você querida; Minhas noites solitárias acabaram querida; Desde que você disse que era minha; Oh, que diferença um dia fez; Há um arco-íris diante de mim O céu acima não pode ser tempestuoso; Desde aquele momento de felicidade, aquele beijo emocionante; É o paraíso quando se encontra romance no seu menu; Que diferença um dia fez ; E a diferença é você, é você”
Esta música faz uma reflexão sobre a transitoriedade do mundo, sempre ameaçada por reviravoltas e mal tempos. A única saída para a felicidade é o amor.
Neste momento se dá a transferência do personagem masculino pela sua correspondente, a irmã gêmea. Passamos a ser guiados pela sua trajetória, que aparentemente esta sob o signo da tragédia. A sensação que nos dá e de que toda a história vai se repetir.
O Rapaz que ele esta namorando é um jovem sensível, branco e tímido, que tem algumas similaridades biográficas com a nossa nova heroína. Ele aparece no plot anterior quando o atormentado irmão o chama de mulherzinha em um treino. Foi criado pela mãe, e o pai era usuário de drogas e violento. Ele tem um sentimento dúbio de ódio e amor pela figura paterna, que agora é um paciente terminal de câncer. Assim com o namorado, a jovem sofre também deste sentimento contraditório pelo irmão, já que o acusa de todas as infelicidades causadas na família (ela é acusada por ofensas nas redes sociais, os pais estão quase se separando e a ruína familiar e econômica esta cada vez maior).
Assistindo este filme pensei muito em algumas semelhanças com o meu filme favorito, Vertigo (1958) de Alfred Hitchcock. Neste filme, também dividido em duas partes, a trajetória do personagem principal se repete como uma onda. Durante a primeira parte acompanhamos o detetive Scottie que segue fascinado uma belíssima jovem casada (Madeleine), que o marido diz estar possuída por uma ancestral suicida. Scottie se apaixona e se envolve com a jovem, mas não consegue evitar a morte da amada devido a sua fobia por altura. Ele é aprisionado em uma depressão misto de saudade e culpa. Na segunda parte ele encontra uma sósia da morta (Judy) e se envolve novamente, convencendo-a a se vestir, tingir os cabelos como a sua fantasmagórica modelo. Quando ele finalmente vislumbra o retorno da morta (Judy transformada em Madeleine) ele nega a fantasia necrófila, libertando-o tanto da acrofobia e da obsessão mórbida fantasística. Estes dois atos, similares, meio que espelhados e reproduzem um arco que se repete e ecoa um, dentro do outro, é o axioma que o filósofo Friedrich Nietzsche entendeu como o “Eterno Retorno”. Em Gaia Ciência ele faz esta apavorante reflexão:
“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!“ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (aforismo 56)”
Nietzsche apesar de ser considerado um filósofo pessimista que acreditava que estamos condenados a repetir sistematicamente nossos erros e nossas vidas, também propõe uma fórmula para livrarmos deste anátema. O filósofo considera que estas repetições estão arraigadas pelos paradigmas que regem a nossa sociedade desde o início da civilização, baseados em uma trajetória que conservam valores patriarcais, belicistas, materialistas, que reproduzem o ódio, a extorsão, o sucesso a qualquer preço, o egoísmo, a ganância descontrolada, e a submissão do homem a Pátria e a Deus acima de tudo e de todos. Esta sociedade patriarcal, hierárquica, autoritária chegou a um ápice inimaginável, que nem na imaginação do filósofo ele poderia conceber, que é da atual sociedade moderna, globalizada, consumista, egoísta que utiliza de ferramentas políticas fascistas para escravizar a população, controlando sua liberdade, desejos e libido.
Para o filósofo de “A Gaia Ciência”, temos que romper com estes paradigmas, procurar uma maneira de viver de forma libertária, com felicidade e alegria e usando o amor como ferramenta anti-autoritária para lutar contra o Estado, a Família Patriarca, Igreja e dos atuais poderes, a Mídia e a escravidão consumista.
Leon Tolstoi, autor de Guerra e Paz, foi um dos primeiros a assumir um Avatar moderno do cristianismo jainista, criando uma sociedade alternativa que se afasta desta sociedade patriarcal. Ele usava roupa branca com uma bata manufaturada por ele mesmo e pela sua comunidade, como forma de combater a falsa vaidade e felicidade criada pelo consumismo, um dos Infernos que cria um ciclo insaciável e aprisiona o homem no Eterno Retorno. Estas lições de Tolstoi não foram muito populares, mas influenciaram outras comunidades e pessoas como Ghandi, o movimento Hippie e outros artistas e pensadores como Charles Chaplin e John Lennon que usavam a ferramenta da Paz e do Amor para combater o ódio da sociedade Patriarcal. O ciclo só pode ser quebrado com a negação deste ódio, desta ganância, deste autoritarismo.
No filme Waves (que metaforiza o Eterno Retorno, que sempre volta) temos este discurso, no início do filme no sermão do Pastor, de que temos que adotar a criança coletivamente e amar condicionalmente a sociedade, mesmo que ela lhe dê um tapa na cara, pois só com a resposta do amor é que quebraremos esta onda. Esta cena não foi valorizada pelos personagens da família que estavam aprisionados pelo discurso de ódio, ambição e autoritarismo.
Voltando a Vertigo, Scottie tem a possibilidade de quebrar este anátema, através da ética e valores morais. Ele se liberta da fantasia mórbida e da espiral abismo fantasista, e em Waves, através da reflexão de seus erros, e da libertação de seus paradigmas patriarcais, e usando das ferramentas do amor e perdão, esta família se libertara do torvelinho destruidor do Eterno Retorno.
Em uma nova cena na Igreja vemos o pai, sozinho e amargurado e agora finalmente compreendendo o sermão do Pastor. O filme toma novas direções. Os personagens destroçados pelos acontecimento da primeira metade da película, agora tem nova oportunidade de reverterem suas vidas, abandonando a prisão do ódio e assumindo o perdão. Um sentimento de leveza vai preenchendo o écran, como no passeio de bicicleta em meio as árvores e a brisa do vento.
Depois de assistir este belo filme passei a assistir a animação “O Link Perdido” (2019), que tem participado das premiações. Surpreendentemente também tem a mesma mensagem.
Um pesquisador aventureiro, Sir Leonel Frost, sem muita sorte tenta inutilmente pertencer a real sociedade de aventureiros, que como um estamento fechado hierárquico e elitista rejeita o nosso herói. Ele resolve procurar e tentar capturar um dos maiores enigmas da natureza que é a do Pé Grande, depois de receber uma carta de um estadunidense que diz ter conhecimento sobre o habitat da mitológica criatura. Chegando ao local ele encontra o gigante símio, que para a sua surpresa, descobre ser articulado, inteligente e sabia ler e escrever, mesmo vivendo isolado como único sobrevivente de sua espécie. Ele também descobre que foi o próprio Pé Grande que escreveu a tal carta. Pé Grande, agora batizado como Sr. Link pelo Frost, pede com ao aventureiro para que o levasse até o Himalaia para encontrar talvez com alguns de seus antepassados. Esta missão é firmada entre os dois, mas é boicotado pelo presidente da Real Sociedade, que contrata um assassino para matar nosso herói e capturar, a criatura, morta ou viva.
Chegando ao Himalaia nossos heróis finalmente encontram uma sociedade de Yetis (abominável homem das neves) vivendo na mítica Shangri-La. Como tinha acontecido com o Aventureiro, o simpático e solitário Sr. Link, também é rejeitado pela estamental e hierárquica sociedade de yetis. Depois que Frost descobriu que o presidente da Real Sociedade estava tentando matá-lo e empalhar o Pé Grande simplesmente como mais um troféu para a coleção desta instituição, e de que Link foi também rejeitado pelos seus iguais eles decidem dar uma banana para estas duas castas e seguirem como colegas e amigos em novas aventuras para preservar e defender estes mundos ameaçados.
Novamente temos o tema do Eterno Retorno sendo revisto e questionado por uma visão libertária. A conscientização e revisão dos paradigmas impostos pela sociedade patriarcal, construindo um modo de vida oposto, através do amor, amizade, e luta contra a destruição e ganância do sistema capitalista e fascista (independente de ter orientação ideológica de esquerda ou direita) é a única saída para as pessoas e para o mundo que esta no inevitável caminho da destruição e reproduzindo ódio e infelicidade.
Quero terminar esta pequena análise com a letra da música The Logical Song (Supertramp):
“Quando eu era jovem,
Parecia que a vida era tão maravilhosa;
Um milagre, oh ela era bonita, mágica;
E todos os pássaros nas árvores;
Bem, eles cantavam tão alegremente;
Oh cheios de alegria, oh brincalhões me observando;
Mas então eles me mandaram embora Para me ensinar como ser sensível Lógico, oh responsável, prático;
E eles me mostraram um mundo. Onde eu podia ser tão confiável;
Oh clínico, oh intelectual, cínico;
Têm vezes, quando todo o mundo está adormecido;
As perguntas vão tão profundamente. Para um homem tão simples;
Você não me diria, por favor, por favor, o que nós aprendemos?
Eu sei que parece absurdo;
Mas por favor me diga quem sou eu. Agora cuidado com o que diz;
Ou eles te chamarão de radical;
Um liberal, oh fanático, criminoso;
Oh você não vai assinar o seu nome?
Nós gostariamos de sentir que você é;
Aceitável, respeitável, oh apresentável, um vegetal;
A noite quando todo o mundo dorme;
As perguntas vão tão profundamente;
Para um homem tão simples;
Você não me diria, por favor, por favor, o que nós aprendemos?
Eu sei que parece absurdo;
Mas por favor me diga quem sou eu, quem sou eu, quem sou eu, quem sou eu"


Este filme realmente é muito bom. Vale a pena assistir. Ótima resenha