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Under the Silver Lake (2018) Análise com spoilers


Under the Silver Lake (2018) Análise com spoilers

Assisti ontem, dia 12/02/19, Underthe Silver Lake, dirigido por David Robert Mitchell, que também realizou Corrente do Mal, um dos melhores filmes de horror de 2016. O filme gerou uma expectativa pelo público cinéfilo que foi frustrada pelas críticas negativas e sua recepção fria no festival de Cannes. Vários membros do MKO também o classificaram como muito fraco. Apesar das críticas resolvi encarar os 139 minutos de duração que também poderia me decepcionar. Mas a minha reação em relação ao filme foi o contrário do esperado, não de imediato após terminar de assisti-lo, já que estava tarde da noite e fui dormir em seguida. Fui tomado por uma inquietação angustiante e tive diversos pesadelos relacionados ao filme. Na chegada da manhã, ainda bem cedo, não conseguia parar de pensar em diversas cenas e de como elas estavam me afetando e resolvi decifrá-las, assim como o personagem Sam, de Andrew Garfield, procurou decifrar os enigmas do filme.

François Truffaut fez uma observação que considero a melhor definição do que é o Cinema, no livro Truffaut/Hitchcock Entrevistas: “O Cinema utiliza a linguagem narrativa dos sonhos, e por certo, Hitchcock foi o melhor que se apropriou desta forma de expressão. Concordo com Truffaut porque sempre quando ia para uma sala de cinema, na minha juventude, e me preparava para o ritual de assistir um filme, qualquer que fosse o gênero, era como se eu estivesse entrando em um portal onírico para fugir um pouco da realidade. Hoje, na minha maturidade, já penso diferente, não na qualidade onírica da linguagem cinematográfica, mas em relação a de fugir da realidade. Os filmes que realmente me marcaram profundamente tem um anelo com o que esta acontecendo no mundo e nas minhas experiências pessoais. O Cinema para mim esta inequivocamente relacionado com a realidade.

Na história do Cinema, a aproximação da psicanálise e os filmes foram exercícios dos artistas surrealistas, que desprezavam os códigos comportados da cultura de massa e abraçavam o poder onírico e revolucionário, que as imagens transformadas pela trucagem e a edição cinematográfica poderiam realizar. Buñnuel e Dali foram os primeiros a atingirem com sucesso em duas obras surrealistas este intento, que foram seguidos por: Durlac, Cocteau, Maya Deren, Parajanov, Vera Chytilová, Fellini, JaromilJires, Alejandro Jodorowsky, Jan Švankmajer, Michel Gondry e David Lynch.

Apesar de Alfred Hitchcock não ser um artista surrealista, mas expressionista, ele conseguiu, em suas tramas de suspense a melhor forma de mergulhar o público no inconsciente, e resgatá-lo no fim das sessões, neste rio submerso de signos, neuroses, traumas, fobias e angústias, como se fossem uma sessão psicanalítica de grupo. Não faltam livros de teóricos que corroboram que Hitch foi o melhor artista que uniu o autor de Interpretação dos Sonhos às telas do Cinema.



Mas o que isto tem a ver com “Under The Silver Lake”? Tudo. Desde “Totem e Tabu”, psicologia profunda, mitologia a questionamentos político-sociais contemporâneos.

Para começar, o filme é permeado por citações da cultura pop, cinema, quadrinhos, vídeo-games, música, como um gigante quebra cabeças que pontuam em diversas situações da saga de Sam e seu universo cultural. Sua residência, um apartamento típico dos condomínios para moradores de baixa renda, apesar da piscina coletiva, é decorada com pôsters de filmes de Hitchcock e dos filmes dos Monstros da Universal Studios, e imãs de geladeira com imagens de Marilyn em seu último filme: Something´sGot to Give. Na sala, um vídeo game e vários exemplares de revistas sobre cultura pop, games e um exemplar da Playboy, que deu origem a sua vida sexual, e o Totem de sua essência cultural-existencial, um quadro-pôster autografado pela filha de Kurt Corbain de um show do Nirvana. Durante o filme todos estes itens serão guias e chaves para o nosso herói em sua trajetória.

Sam esta atolado em dívidas, prestes a perder seu carro e de ser despejado por falta de pagamentos. Mesmo assim passa sua tardes desocupado a exercer um voyeurismo na maior cara de pau ao utilizar um binóculo, como o personagem de James Stewart em Janela Indiscreta, para assistir suas vizinhas, uma coroa hippie nua na sacada ou de uma ninfeta de biquíni na piscina. Ele aborda a ninfeta, Sarah (Riley Keough, neta de Elvis Presley, outro ícone pop) e meio que se apaixona por ela depois de um encontro no apartamento da garota. No dia seguinte, quando a procura, descobre que ela desapareceu e só deixou uma caixa com alguns objetos como as barbies das personagens de Como Agarrar um Milionário (outra vez Marilyn). Bancando um detetive, como Scottie de Vertigo, Sam observa uma das garotas, que dividia o apartamento com Sarah, levar a caixa em direção a um carro com mais duas amigas. Ele as segue até o Lago Silver e passa a perseguir as moças em um pedalinho. Em uma das margens, a moça entrega a caixa para uma figura estranha, um sujeito vestido de pirata, que também estava no apartamento de Sarah, no primeiro encontro. Durante toda esta sequência típica de filme noir, a trilha sonora pontua, com clichês musicais de filme de gênero, mas com orquestração atonal e exagerada e, por vezes, dessincronizada em relação adiegese da ação.



Ao chegar a noite no condomínio, Sam tem uma visão de Sarah na piscina, reproduzindo uma cena clássica de Marilyn em Something´s Got to Give, as mesmas imagens dos imãs de sua geladeira. Sam descobre um anúncio sobre uma apresentação ao vivo da banda “Jesus e as Noivas de Drácula”, e lembrou que Sarah tinha um disco desta banda em seu apartamento. Esta banda pode ser uma homenagem do diretor a um clássico filme “B” Cult: Jesus, Caçador de Vampiros”(2001), ou como a famosa banda criada em 1971 por John Lennon, Alice Cooper e Harry Nilson: Hollywood Vampires.

Sam vai até a apresentação para achar alguma conexão com Sarah e encontra com as três garotas do carro. Segue uma delas até o banheiro, a que levou a caixa, e mostra uma foto de Sarah (que ele havia retirado da caixa). A moça apenas dá um chute nas partes íntimas de Sam e vai embora. Ainda na festa Sam escuta algumas observações do público sobre a banda, como: A banda deveria se chamar Jesus e as noivas de Frankenstein, para fugir dos clichês dos filmes de vampiros atuais que imundam a cultura pop. Esta observação é interessante apesar de que eu considero que vampiros é mais adequado ao tema do cristianismo, já que na eucaristia a imortalidade é adquirida com o sangue de Cristo, assim como o sangue no vampirismo. Ainda na apresentação, Sam se encanta com a performance de dança de uma garota com balões e ganha um convite em forma de biscoito, para a próxima apresentação da banda.



Uma das analogias que faço com este filme é com o clássico da literatura “Alice Através dos Espelhos”. Tanto o livro quanto o filme possuem uma narrativa alegórica e onírica. A trajetória de Alice no filme é substituída por Sam, um homem adulto que é guiado por uma musa, ou anima de um arquétipo feminino sensual e eternamente jovem (Marilyn), que também é representado nas loiras fatais do cinema noir e nos filmes de Hitchcock. No livro, Alice se utiliza de um biscoito para entrar em portal ou espelho para um mundo paralelo. No filme, Sam tem que dar uma mordida no biscoito para entrar no cemitério (outro mundo) de Los Angeles e assistir o show. Em diversos momentos do filme Sam tem que descripitar enigmas e códigos para continuar sua trajetória em busca de Sarah. Em outra sequencia, próxima do final, Sam mergulha no Lago Silver (lago prateado=Espelho) onde tem acesso a um bracelete com mais códigos.

No show, a banda, Jesus e noivas de Dracula, toca uma bela versão de “To Sir With Love” (do filme “Ao Mestre com carinho”). No local, as mesas eram nomeadas com ícones do cinema clássico de horror e Fantasia como: as Atrizes Elsa Lanchester e Brigite Helm, num ambiente de lápides e gavetas dos mortos de Hollywood. No salão principal do evento Sam reencontra a dançarina dos balões. Ele mostra a foto de Sarah e a moça diz que a conhecia, mas Sam começa a passar mal. Tinha comido todo o biscoito, que na verdade era uma droga potente que deveria ser consumida aos poucos, com intervalos de tempo. Vai ao banheiro cambaleante para vomitar a droga, mas quando volta a moça dos balões tinha saído. Sam a procura no cemitério e encontra outras amigas de Sarah, que perseguiu no dia anterior, encostadas na lápide do mestre do Suspense. Elas vão em direção a uma limusine de encontro com o misterioso pirata. Sam, ainda sob os efeitos da droga, desmaia no cemitério. Nosso herói acorda com uma ligação de celular de sua mãe. Ela disse ao filho que havia assistido um filme romântico mudo “Sétimo Céu”, com a sua atriz favorita Janet Gaynor. Sétimo Céu é um filme do cineasta Frank Borzage, considerado uma das obras primas do diretor e representa um dos mais belos filmes sobre o amor romântico transcendental. Por coincidência Sam estava dormindo ao lado do túmulo de Janet Gaynor.



Neste ponto temos mais uma referência de anima que Sam persegue, que Carl Jung considera como anima positivo, associado a mãe e a Janet Gaynor (ou melhor ao personagem de Gaynor em Sétimo Céu), ao amor platônico e transcendental.

Em outra trama paralela, Sam estava interessado em encontrar com o autor de um fanzine de quadrinhos que estava utilizando de lendas urbanas e do perturbador serial killer de cães de Los Angeles em uma Graphic Novel. Ele tinha deixado seu nº de telefone em uma livraria para que o autor o retornasse. Sam recebeu a ligação do misterioso autor e marcou um encontro na casa deste, interpretado pelo ator Patrick Fischler. Tanto o autor como a casa eram bem estranhos, como esperado. O autor de HQ tinha uma enorme coleção de máscaras de moldes de personalidades exibidas na parede da sala. O mais bizarro foi uma sala secreta, tipo um quarto do Pânico, com vários monitores de vigilância, em que o autor guardava seus itens mais preciosos, como uma caixa de cereais que continha um mapa de Los Angeles, que revelam lugares secretos, que só códigos complicados poderiam revelar os locais. Nas paredes deste quarto secreto tinham várias fotos, inclusive a musa de Sam, Marilyn. O autor deu de presente a Sam a sua nova obra, uma Graphic Novel de uma outra lenda urbana, pouca conhecida, mas que atacava, matava e bebia o sangue de homens, durante a noite em seus camas, uma espécie de Súcubo, com corpo de uma deslumbrante mulher nua, com rosto de coruja. O quarto do Pânico seria uma forma de se defender deste monstro noturno. Sam se despede de seu recém amigo, levando os quadrinhos e um livro de como revelar códigos secretos.



Em outro momento, Sam lembrou de uma conversa com um amigo de que o compacto em vinyl da Banda Jesus e as Noivas, na faixa B, tinha segredos subliminares. Ele conseguiu o disco e tentou ouvi-lo na forma correta para tentar descobrir alguma pista. Depois passou a ouvi-lo de trás para frente e nada. Passou a cantar com o violão a música e teve um insight. Através dos compassos musicais, associado ao livro de códigos, passou a numerar algumas letras da canção e daí extraiu uma frase sem sentido: “Esfregue a cabeça de Dean e depois sente embaixo de Newton”. Sem noção nenhuma do que a frase poderia dizer, Sam vai a sua sacada e tem um outro insight ao ver o observatório no morro de Hollywood. Lembrou que Dean poderia ser James Dean em sua famosa cena do Observatório no filme “Juventude Transviada”. Recordou que no local da famosa cena foi erigido um busto do ator. Sem carro, já que o guincho o havia levado por falta de pagamento, foi até o observatório e lá chegando passou a mão na cabeça do ícone. Depois, deu uma volta e descobriu um monumento com as estátuas dos primeiros astrofísicos e, entre elas, estava a de Newton. Sentou em baixo do ícone e esperou. Em seguida um sem teto, com uma coroa e capa mambembe anunciou-se como o Rei dos mendigos e que deveria ser seguido com vendas nos olhos. Sam acompanhou-o até a uma porta de metal incrustada em uma montanha. O mendigo abriu a porta digitando um código numérico em uma fechadura eletrônica. Sam entrou sem a companhia do seu guia e penetrou por um umbral esculpido com figuras egípcias, sob o olho de Horus, o Olho que tudo vê e protege, também utilizado pelos Maçons do Tea Party e da plutocracia estadunidense. Após passar por este umbral descobriu que estava em um enorme bunker de proteção de guerra nuclear, luxuoso e com muitas provisões.



Uma observação a ser feita sobre os sem tetos neste filme. No quarto de Sarah, Sam observou que tinha um desenho de dois losangos, lado alado, que chamou a sua atenção, logo depois do desaparecimento da mesma. Na casa do autor das HQ, Sam pergunta sobre este signo. O escritor das HQ revelou que tais losangos representam um sinal de proteção, que foram desenvolvidos pelos sem tetos para comunicação entre eles na cidade de Los Angeles. Este livro também foi presenteado a Sam pelo autor. Nosso herói tinha uma enorme rejeição pelo lumpesinato, o que revelava seu medo de se tornar um, já que estava para ser despejado e não tinha dinheiro. Esta casta miserável, no filme, é representada como guias e portadores de segredos do outro mundo. Na grande mitologia arquetípica iconográfica do ocidente, o Tarô, que vem desde o antigo Egito até a Idade Média e Moderna, o mendigo é representado pelo arcano do Louco, a vigésima segunda carta como também a carta zero, já que representa a ultima e primeira carta, como um fechamento e renovação de ciclo. Dentro de uma jornada arquetípica significa a liberdade, o nascimento, A Roda da Fortuna, a morte e o eterno retorno. O Louco no Tarot representa novos horizontes na vida e a vontade de desvendá-los, pois você já concluiu com sucesso um ciclo. Um arquétipo que representa ansiedade e repulsa na vida de Sam, mas também prosseguimento e busca por respostas existenciais. No filme os mendigos são representados como uma organização secreta, capazes de ter um código próprio, signos lingüísticos que são gravados nas paredes dos prédios, nas ruas de Los Angeles para a ajudarem a identificar perigos e protegerem os sem tetos, assim como outras informações. Na literatura européia do século XIX, os mendigos também aparecem como uma organização do submundo, nas redes de esgotos e locais escondidos da sociedade dominante, representados por ladrões, indigentes, artistas mambembes e loucos. Elas aparecem em romances como Oliver Twist e Grandes Esperanças de Charles Dickens e romances do Mestre Vitor Hugo. O estranho é que no filme, as duas castas extremamente opostas possuem um contra ponto e um elo, comprovado pelo fato de o Rei dos Mendigos conhecer o Bunker secreto dos plutocratas de Los Angeles. O símbolo do Oroboro, que é apresentado no filme em duas situações que comentarei adiante, reforça este elo, entre o contato da cabeça com a cauda, representado um círculo holístico de eterno retorno.



A descoberta deste Bunker não satisfez a curiosidade de Sam. Só serviu para confundi-lo mais ainda, assim como também não revelou o paradeiro de Sarah, sua principal preocupação nesta trajetória. Em casa, desanimado com ausência de respostas descobre, numa fanzine do Google, um anúncio de garotas de programas em que reconheceu duas das amigas de Sarah. Chamou uma delas para a sua casa. No encontro Sam pergunta a garota sobre a última vez que viu Sarah, que respondeu ter sido numa festa de um tal de “O” Compositor. Ele não deu muita importância e perguntou sobre a banda Jesus e as noivas, e quando seria a próxima apresentação.

Sam foi até esta apresentação e lá estavam as três amigas de Sarah, inclusive a garota dos balões. Mas ele estava mais preocupado em falar com Jesus e arrancar informações sobre as letras e os códigos, seguindo-o pela casa até o banheiro e lá o arranca da privada com violenta intimidação. O estranho, é que o diretor dá um close fechado na privada e mostra o coco de Jesus que formava uma espécie de auréola ou a forma da figura de Oroboro. Não consegui definir bem a imagem por repulsa, mas me pareceu ser mais a imagem de Oroboro, que é um conceito representado pelo símbolo de uma serpente, ou um dragão, que morde a própria cauda. Nos dicionários de símbolos Oroboro é uma criatura mitológica que, ao engolir a própria cauda, forma um círculo que simboliza o ciclo da vida, o infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Muitas vezes, esse símbolo antigo está associado à criação do Universo. Temos novamente o arquétipo da renovação, ou nascimento ou morte.



Sam bate em Jesus com força e pergunta sobre as canções e os códigos, e se teria mais músicas com significados cifrados. O cantor revela que não era o compositor das músicas e que o autor era conhecido apenas como “O” Compositor, mas não sabia onde morava, ou de onde era. Sam vai até as garotas e pede que o levem até a residência do “O” Compositor. Chegando na casa, uma mansão que faz menção aos filmes Interlúdio de Hitchcock e Crepúsculo dos Deuses de Billy Wilder, Sam escala os muros e penetra no interior até dar de encontro com “O” Compositor. Encontra um velho bem enrrugado tocando piano. Ele pergunta sobre as músicas de “Jesus e as noivas de Dracula”, se eram de sua autoria e se todas tinham significados secretos. Ele respondeu que sim e só algumas eram cifradas. Continuou dizendo que a música “Pop” era vazia e na maioria sem significados ou menor importância. Um lixo a ser descartável, e por durante décadas compôs vários hits, que os avós de Sam ouviram na juventude. Tocou, como se conhecesse as preferências de Sam, um clássico do Nirvana, dizendo que ele era o autor e que, na verdade, os heróis e ícones que ele cultuava como revolucionários, não criaram nada. Ele disse que compunha apenas por dinheiro e que aquelas canções não tinham qualquer relevância cultural, nenhum hino de uma geração, mas apenas canções que iludiam a mass média que sempre será controlada pelos senhores da humanidade, os ricos e poderosos, e que nada mudaria, como nos séculos. Este discurso foi trabalhado pelos pensadores da famosa escola de Frankfurt, como Adorno e Hokerheimer que desenvolveram a crítica da Cultura de Massa, como forma de manipulação da industria cultural e poder midiático pela classe dominante.O Compositor continuou tocando diversos hits iconizados por diversas gerações, como: Pimball Wizard da Ópera Rock Tommy do The Who, até o quarto movimento da Nona de Beethoven (Talvez a música mais amada pela humanidade, sem diferenças de cor, credo, classe econômica, ou posicionamento político). Enquanto tocava com gargalhadas de deboche, Sam se enervou e ameaçou em agredir o compositor, que logo se defendeu com uma pistola. Sam derruba o compositor e o acertou diversas vezes na cabeça, até esmagá-lo por completo. Foi a cena mais violenta do filme (anteriormente em outra cena também violenta, ele soca e chuta três adolescentes que vandalizaram o seu carro). Neste ato de violência Sam expurga seu ódio, frustrações, humilhações, medos e sua crise existencial. “O” Compositor tinha desconstruído sua essência, sua bagagem cultural, seu amor pelos filmes, games, livros quadrinhos, desqualificando-o como gente, apenas como um idiota da mass média, sem cultura, personalidade, sem essência. “O” compositor assume o papel de Deus pós-moderno, que durante os séculos tem servido a aristocracia e ao poder para subjulgar, enganar, lubridiar, abafando qualquer tentativa de levante ou revolução. Nesta posição divina “O” Compositor também assume o papel do pai primordial que Freud teceu em sua fábula para desenvolver sua teoria sexual. O assassinato que Sam cometeu contra “O” Compositor, também representa sua libertação.



Sam continua sua jornada ainda sem respostas sobre o paradeiro de Sarah. Em sua casa, à noite, ele recebe uma visita da Entidade espectral do Súcubo com rosto de Coruja. Como estava com a arma do “O” Compositor, consegue afugentar o espectro. Em seguida toca a campainha e era seu senhorio com um policial dizendo que seria despejado neste momento. Sam consegue adiar mais um dia e retorna ao escuro de sua sala, quando escuta um uivo de um coiote na rua. Lembrou que na caminhada com o Rei dos mendigos foi aconselhado que quando encontrasse com um coiote, não era para se temer. O Rei dos mendigos revelou a Sam que o coiote é um animal sagrados e quando o encontrasse deveria segui-lo. E é isto que Sam faz. Começou a seguir o coiote pela cidade, vestido de pijama. O coiote o leva até a mansão da filha de um milionário, que havia sido assassinado de forma misteriosa, incendiado em uma rua de Los Angeles. Ele já tinha visto esta moça no primeiro show da banda de Jesus e as noivas, e sentiu empatia pela sua dor. Na mansão acontecia uma festa e nela Sam encontra uma jovem, que durante o filme tem o seu rosto apresentado em um outdoor de um produto que despertava confiança e transparência. Este mesmo outdoor, em outro momento, estava sendo trocado por outro da MacDonalds, e o rosto da jovem era bipartido pelo rosto do palhaço Ronald. Neste fortuito encontro ficamos sabendo que esta jovem era a ex-noiva de Sam que terminou o noivado para ficar com outro rapaz bem sucedido. Depois Sam começou a conversar com a anfitriã, que estava admirando um quadro, justamente de Janet Gaynor, a atriz favorita de sua mãe. Na conversa os dois sentiram uma forte empatia um pelo outro. A personagem da anfitriã, interpretada por Callie Hernandez, segura a mão de Sam e pede para que a acompanhasse. Foram até a Silver Lake e começaram a nadar e fazer amor. Durante este momento a moça entrega uma pulseira com letras e números gravados. Esta pulseira mais conhecida como “escrava”, tem a forma de Oroboro, com dois extremos que quase se tocam. Em seguida ela revela que estava sendo seguida e tinha muito medo. Os dois começam a serem alvos de tiros e decidem mergulhar para se protegerem. Submersa a moça é atingida e, na perspectiva do olhar de Sam, fica com a mesma imagem da modelo da capa de sua primeira Playboy, com o rosto virado para baixo, olhos arregalados e a boca vermelha. É curioso que a primeira imagem que despertou a sexualidade de Sam remetesse a morte. Esta personagem faz parte de uma galeria de outras garotas que despertam o interesse sexual ou assombram Sam. Neste grupo estariam a pinup fã de Marilyn, Sarah, a coroa hippie vizinha nudista, a garota dos balões, que o excita em uma cripta, a prostituta ambígua e a filha do milionária, morta no lago e cristalizada em uma imagem erótica de seu passado. Uma galeria de sereias, malucas, sucubos, noiva traidora, femme fatales, típicas de suas preferências arquetípicas cinematográficas e animas de sua alma confusa.



Por fim, Sam esta próximo de acabar sua jornada. Através da pulseira com códigos gravados, uma revista de vídeo game e um mapa infantil de Los Angeles, contido na caixa de cereais dos anos 60, encontra a localização secreta no qual deveria se dirigir para encontrar Sarah.

Por fim é revelado a Sam uma sociedade secreta de milionários que, cansados deste mundo, acreditavam em um ritual que após um isolamento de um soberano macho e três mulheres jovens atraentes e submissas, seriam arrebatados para o paraíso. O ritual era realizado durante um mês em um Bunker, onde o quarteto se divertia, assistindo TV, fazendo sexo estando, ao final do período, prontos para a última fase que seria o suicídio e a migração para o éden, somente para os iniciados. Sam pergunta, para o Alpha soberano do grupo, sobre Sarah e ele disse que ela estava no Bunker terminando a penúltima fase, juntamente com outras duas garotas e seu Alpha, o milionário desaparecido que ocupou as manchetes recentes com sua trágica morte. Ele disse que a sua morte foi forjada, utilizando outro corpo, com evidências de DNA e alguns dentes do Alpha. Sam disse que entraria no Bunker, mas para não interromper o isolamento, o milionário permitiu um acesso por computador. Através deste, Sam a questiona porque ela estaria fazendo isso e respondeu que era divertido. Sam explicou que a procurou, arriscando sua vida e suplica para ela sair, mas Sarah achou estranha toda esta dedicação, visto que os dois mal se conheciam. Na verdade Sam também acha estranho o que fez e se despede de Sarah e do grupo que já estava desfalecendo, por causa do veneno que tomaram.

Sam retorna para o seu apartamento, sabendo que seria despejado em poucas horas, e fica pensativo enquanto o pássaro da vizinha Hippie articulava algumas frases incompreensíveis. Sam novamente parece compreender o que a Catatua dizia e foi até ao apartamento da vizinha, que o convida para entrar. Nova cena e Sam esta deitado com a coroa, de seus seios nus grandes e caídos como a “Grande Mãe”(símbolo matriarcal), felizes por estarem juntos. Amanhece e Sam vai até a varanda e vê seu apartamento sendo ocupado pela policial e o senhorio, que reclama de dois símbolos pintados na parede, os dois losangos lado a lado (este símbolo também remete ao signo matemático do infinito, como o Oroboro e outros já citados). Sam olha para esta cena e sorri. Fim do filme.

O filme como todo não me pareceu excessivo no tempo de duração ou com nenhum problema de roteiro. Apesar da trama surreal e onírica, com situações que não compreendi no plano geral, não me incomodou no sentido de construção cinematográfica. Ficam claras as intenções do diretor ao realizar este noir-cômico de horror como se fosse um sonho. Não se trata de um filme naturalista, apesar das interpretações dos atores serem naturalistas, causando um estranhamento ainda maior para o público agarrado a convenções narrativas. O fato do personagem Sam ter algumas visões que se desconstroem com a trama diegética, a trilha sonora descompassada e exagerada, o desfile de personagens estranhos, deixam claro que as intenções do diretor eram de trabalhar com signos do inconsciente, que podem ser decodificados com o conhecimento psicanalítico, mitológico, filosófico ou mesmo não ter nenhuma explicação racional. O argumento lembra também o clássico noir de Howard Hawks, A Beira do Abismo, filme baseado no livro de Raymond Chandler que no título original “ The big Sleep” pode ser traduzido como “O Grande Sonho”, corroborando ainda mais sobre a tendência onírica deste filme em questão. A Beira do Abismo se tornou um dos filmes mais indecifráveis da história do cinema. Durantes as filmagens Hawks, um pouco confuso com a trama ligou para Hemingway, roteirista da película, para perguntar sobre certas questões do roteiro. O próprio Hemingway confessou que também estava confuso com estas questões. Isto levou Hawks a procurar Chandley para desvendar as dúvidas, mas o próprio autor também manifestou que não tinha respostas. Outro filme que Underthe Silver Lake tem muitas semelhanças é com a lisérgica comédia dos irmãos Coen, O Grande Lebowski, também um dos filmes mais oníricos, com contrapontos com a plutocracia e lumpesinato hippie.

Na minha cabeça, como fui dormir logo após ter assistido o filme, foi como injeta-lo diretamente em meu inconsciente, provocando uma catálise de meus temores pessoais, com as dos personagens suscitados pelo filme. A situação política do país, que esta gerando um pesadelo consciente em plena vigília, meus medos em relação a minha situação de emprego, garantias sociais, previdência, caos social, repressão fascista, são subsídios para criarem monstros e pesadelos terríveis em meu inconsciente. A instabilidade econômica e social de Sam tornou-se minha. O bunker egípcio remete a Olavo de Carvalho, mentor intelectual (rss) de todo o fascismo que estamos vivendo, que também se isolou no porão de sua casa e construiu uma barca egípcia para migrar para um Éden de escolhidos patriarcais. Só não posso dizer que eu tenha me identificado com uma das questões principais do filme, que foi a trajetória edipiana de Sam, ao matar o Pai Simulacro Patriarcal (“O” Compositor) e sublimar o amor materno na vizinha Balzaquiana. Só sei que nestes tempos sombrios um bom recurso é visitarmos os nossos inconscientes, porque acho que tem muito a dizer e a revelar.

Quanto ao filme, foi uma das mais belas experiências cinematográficas deste ano e certamente esta obra-prima rejeitada encontrara seu reconhecimento no futuro e, desde já, é um dos meus cults. A interpretação de Andrew Garfield foi a melhor de 2018 e merecia todos os prêmios, apesar de não ter recebido nenhuma indicação.

Iury Salk

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