Mãe! (2017)
- Iury Salk Rezende
- 26 de fev. de 2020
- 8 min de leitura

Mãe! Assisti na época do seu lançamento no cinema:
“A Mãe” para mim, dentro de uma retrospectiva histórica do cinema, é um dos melhores filmes sobre a criação, juntamente com a obra-prima de Fellini “Oito e Meio”. Mas Aronofsky aborda o tema da criação de uma maneira mais intensa, delirante, religiosa e atávica, do que qualquer outro cineasta já tinha realizado, principalmente por utilizar passagens bíblicas, como Gênesis (Criação, Adão e Eva, Cain e Abel, Abraão e o sacrifício), Apocalypse e mitos que passam por várias religiões como o simbolismo da pedra. A religião já se fez presente em sua filmografia como “Fonte da Vida (2006)” e “Noé (2014)”, porém nunca com tanta força e síntese de ideias e símbolos. No início do filme vemos uma jovem e bela, encarnada magistralmente por Jennifer Lawrence acordando de sua cama em uma casa espaçosa, em processo de reforma, num espaço bucólico. Ela é casada com um senhor, vinte anos mais velho, interpretado pelo grande ator Javier Barden, um poeta em crise criativa. Jennifer é responsável pela reforma da casa, enquanto Javier se isola em um quarto no andar de cima, seu refúgio para o trabalho criativo. A casa já tinha sido queimada por um incêndio, que destruiu tudo do poeta, só restando um cristal que ostentava em seu gabinete, como um totem religioso.

A rotina da casa é quebrada quando o casal recebe a visita de um estranho, interpretado pelo ator Ed Harris, que acolhido pelo poeta passa a dormir em um dos quartos. Jennifer fica incomodada com esta situação e questiona seu marido, que contra-argumenta que ele não tem para onde ir, era fã fervoroso da obra do poeta e tinha vindo de muito longe para conhecê-lo.

O estranho durante a noite começa a passar mal e é socorrido pelo anfitrião. Jennifer presencia o estranho vomitando no banheiro e vê uma ferida aberta nas costelas do mesmo, que é imediatamente camuflada pelas mãos do poeta. Como havia comentando a ferida aberta na costela remete a um velho Adão que ainda não cicatrizou a abertura que deu origem a Eva. No dia seguinte uma segunda estranha surgiu na casa, agora a mulher do fã/Adão, encarnada por Michelle Pfeiffer, que causa mais desconforto à jovem anfitriã, pelo seu comportamento invasivo e arrogante. Durante uma conversa entre o Poeta e sua esposa, que se queixava sobre o mau comportamento dos convidados e implorava para serem expulsos da casa, os dois escutam um estrondo vindo do gabinete. Ambos correm para o local e o Poeta fica chocado ao ver seu precioso cristal despedaçado, acidente provocado por descuido dos convidados e, imediatamente o anfitrião os expulsa.

Como havia mencionado, o ”Cristal” é reconhecido como um forte símbolo metafísico em diversas culturas, inclusive a judaica. Como exemplo temos a pedra preta, exposta no Kaaba, símbolo máximo na religião Mulçumana. O cristal também está presente no mito da busca do Santo Graal. Na psicologia Profunda de Jung as pedras e cristais simbolizam o “Self” ou a alma. No contexto do filme, o Cristal do poeta pode também significar um conhecimento secreto ou o fruto proibido do Paraíso. Em seguida, após a ordem de expulsão de Adão/Eva, irrompem na sala dois jovens, filhos do casal, que tumultuam o ambiente com acusações e agressões físicas culminando em fratricídio e agressão física na apavorada Jennifer. Nesta cena temos mais uma alusão bíblica do Gênesis, a de Cain e Abel. Enquanto o jovem assassino foge, o anfitrião socorre o jovem quase morto e seus pais levando-os para o hospital mais próximo. À noite Barden retorna com seus convidados desolados e o corpo do filho para ser velado, acompanhados por uma fila de diversos convidados que vão se adentrando durante toda a noite. A casa vai se tornando uma verdadeira Babel com diversas figuras estranhas e lascivas: uns pintavam a casa, outros provocavam destruição nos encanamentos e na pia da cozinha. Por fim o poeta, impulsionado pela sua já desesperada esposa põe um fim a balbúrdia e expulsa os convidados.

Durante todo o filme a casa é um local com diversos significados. Enquanto o andar de cima e o gabinete são o reduto do marido, local de criação, etéreo, aéreo, sublime, tal qual um Super-ego Patriarcal, o Porão é o refúgio da jovem senhora: local férreo, terreno, carnal, que dá sustentação, calor, através das caldeiras escondidas, como o coração da casa, associando Jennifer a figuras míticas como Demeter, a Grande Mãe, Géia/Gaia. Na verdade, durante o filme, Jennifer sofre surtos e alucinações com a casa, em imagens escatológicas, sangue perfurando os assoalhos e visões de um coração batendo por dentro das paredes. Para suprimir estas alucinações ela toma um remédio laranja em pó. A farmácia esta associada como uma criação Matriarcal, cujo símbolo é o de duas cobras entrelaçadas, que também remetem a deusa Naja, associada ao demônio e a serpente do Paraíso. Nas cenas velório/bacanal, vários convidados estavam pintando e jogando argamassa nas paredes, o que incomodou muito a anfitriã/Géia, já que a metáfora de manutenção da casa/natureza/universo é de sua responsabilidade, assim como os ciclos/estações que vão do nascimento, morte e regeneração. O Matriarcado foi responsável pela criação da agricultura e os segredos da natureza, assim como o Patriarcado são associados com a caça e a Astronomia. A personalidade do Poeta/Zeus/Deus é festiva e alegre na companhia de outros homens durante as cenas do velório, ou quando estava ao lado de seu Adão/Fã, assim os primeiros astrônomos/caçadores que se reuniam e saiam à noite para caçar e observar as estrelas e se confraternizavam em volta de uma fogueira nas florestas. Já Geia/Jennifer, isolada e responsável pela reconstrução da casa se incomoda com as intromissões dos fãs do Poeta/Zeus, que tratam a anfitriã com intrusa em sua própria casa. Em diversas cenas os convidados e principalmente a personagem Eva/Michelle zombam de Jennifer ao questiona-la se a casa era realmente dela. Nestas cenas temos a confirmação que Jennifer está isolada e sem aliados, até mesmo de seu marido, que vive em mundo regido totalmente pelas regras do patriarcado. A própria Eva é uma construção teológica que sucedeu Lilith, primeira esposa de Adão, por causa de sua insubordinação ao patriarcado. Lilith é só mencionada no Torá e excluída da Bíblia. Durante todo o filme Michelle/Eva, mulher patriarcal criada pela costela de Adão, diferente de Lilith, criada pelo barro, se rivaliza com Jennifer e exibe um comportamento masculino, em poses, gestos e até na promiscuidade masculina. Assim como Réquiem para um Sonho (2000), O Lutador(2008) ou Cisne Negro (2010), em Mãe! o que está em jogo é um personagem em transformação. Os ciclos, durante o filme variam da placidez de um acordar em um ambiente bucólico para diversas cenas de horror que se seguem. Como no mito da Roda da Fortuna e nas idéias de Friedrich Nietzsche sobre o Eterno Retorno, o filme é uma alegoria sobre as angústias, as conquistas, os desenlaces, as tragédias, que voltam e retornam no ciclo da vida. A cena inicial é a mesma da cena final, com a diferença de um rosto diferente. A personagem da Mãe é o ápice da carreira do diretor que recriou historias semelhantes para contar a progressiva e paroxista transformação dos protagonistas de seus filmes. Sem dúvida alguma também é o auge de interpretação da carreira da atriz Jennifer Lawrence até o momento. Mas vamos voltar à trama do filme. Após a expulsão dos personagens Jennifer reclama ao marido que ele estava mudado e indiferente e não faziam mais amor há tempos. Após nove meses, tempo de uma gestação, Jennifer acorda com uma gravidez bem avançada e o Poeta, enfim, concluiu seu novo poema e livro. Jennifer lê o poema, ilustrado em belas imagens pelo diretor, emocionando muito a protagonista. Não é casual que na eminência de Jennifer dar a luz o Poeta também conclua a sua criação, um poema belo e arrebatador, como se os dois competissem no ato da criação: a da Grande Mãe dar a luz e gerar vida e a de Deus criar o Verbo. Como no versículo de João: “No princípio era o VERBO, e o VERBO estava com Deus”. Em seu livro “A Linguagem Esquecida” Erich Fromm, sociólogo e psicólogo da Escola de Frankfurt, desafia a teoria freudiana da Inveja do Pênis ao propor a teoria da “Inveja do Útero”. Neste, ele argumenta que o homem, antes da sociedade patriarcal, estava contaminado por uma inveja ao poder criativo das mulheres, visto que eles não podiam suplantar o poder de criar vida. À noite, Jennifer estava finalizando o jantar comemorativo ao lançamento do livro do marido e novamente o caos volta a dominar a casa com a invasão de diversos e estranhos fãs. Eles organizam uma improvisada noite de autógrafos que envaidecem o anfitrião, deixando-o completamente dominado pelas bajulações. Novamente a Deusa Mãe é hostilizada pelos fãs do Poeta, tratando-a como uma prostituta, como se ela não pertencesse a casa. Jennifer tenta falar com o marido, que alucinado com as bajulações dos fãs/leitores, não lhe dá ouvidos.

Os fãs passam a organizar um culto em um templo improvisado em uma das salas, liderados pelo presidente do fã clube do Poeta, que mais parece um fanático religioso ancião. As situações vão ficando cada vez mais caóticas. Cenas de orgias, loucuras, agressões entre grupos, conflitos militares, mortes em cores que parecem ter saído da paleta de Hieronymus Bosch em seu tríptico “O Jardim das delícias terrenas”. Todo este caos apocalíptico leva Jennifer/Géia se refugiar ao porão onde reside as suas forças primais. Mesmo dentro de seu refúgio ela é perseguida pelos loucos seguidores do Poeta/Jeová, levando à procurar a proteção do marido.

A Deusa Mãe é espancada e antes que acontecesse o pior é salva pela intervenção do Poeta, agora já preocupado mais com salvação do filho. Ele a leva para seu gabinete onde ela dá a luz. Nasce uma criança perfeita. Os dois se emocionam e o pai pede que lhe entregue seu filho, mas a mãe nega, dizendo que o filho era dela. Neste momento, fica clara a intenção do diretor em colocar a disputa da criação e a inveja de Deus. Segue um momento de vigília, onde o bebê fica protegido nos braços da mãe e o Pai fica encarando-os, na expectativa de que ela “baixasse a guarda”. A mãe desperta assustada ao descobrir o desaparecimento do filho e o que se segue é mais uma cena bíblica. Ela encontra o pai/Deus exibindo seu filho aos seus seguidores como a maior de suas criações, em um púlpito improvisado. Quando ela ameaça recuperar seu filho, o pai joga o bebê na massa de fiéis que levam de mãos em mãos até o sacerdote mor, representação de um Abraão que esquarteja o bebê Jesus/Dionísio e serve aos fiéis seus pedaços, como numa missa eucarística. O horror da profanação de seu bebê /criação leva a uma fúria titânica e a um poder que a jovem mãe desconhecia.

Ela se irrompe em fogo como uma bomba que leva a casa, todos seus integrantes e o local em chamas, em completa destruição. A única coisa que se destaca em meio às cinzas é um belo pedaço oval de cristal. A cena termina para dar lugar à de abertura, de uma jovem acordando em um quarto, agora com um novo rosto.

Não é a toa que este filme provocou vaias e aplausos, divisão entre os críticos, acusado de ser um filme sem sentido ou reconhecido como uma obra-prima do cinema fantástico e surrealista. Para mim está muito claro. Todos os simbolismos foram muito bem representados nas duas horas de duração desta obra feérica, que nos faz pensar sobre a nossa natureza existencial, nossos mitos, o que somos e porque somos. A alucinada inquietação do homem em suplantar a natureza gerou Mona Lisas, Davis, as obras de Shakespeare, mas também legou guerras, bombas atômicas, inquisição e o capitalismo selvagem. Estamos fadados a esta comédia humana, em ciclos que se repetem de tempos em tempos. Odiar este filme é não entender a natureza humana, não reconhecer que a humanidade é doente e que precisamos de ajuda e saber.

Iury Salk
excelente filme e brilhante resen ha. Parabéns Iury