Hitchcock e a Trilogia Edipiana
- Iury Salk Rezende
- 25 de fev. de 2020
- 106 min de leitura

Hitchcock e a Trilogia Edipiana.
“Existe algo mais importante que a lógica: a Imaginação.
Se a idéia é boa, jogue a lógica pela janela.”
Alfred Hitchcock
Não é grande novidade associar o cinema de Alfred Hitchcock com as teorias psicanalíticas de Freud e Lacan. Livros como o de Slavoj Žižek “everything you always wanted to know about lacan... but were afraid to ask Hitchcock”, título que brinca com um dos filmes de Woody Allen, corroboram com a afinidade do mestre do suspense com a psicanálise. O Complexo de Édipo é notado em diversos personagens de vários filmes do mestre como “A Sombra de uma Dúvida”(1943) e a aproximação quase incestuosa, repleta de fascínio da jovem Charlie (Teresa Right) pelo seu tio Charlie (Joseph Cotten). Também em “Interlúdio”(1946) e a simbiótica ligação de Alexander Sebastian (Claude Rains) com a sua mãe, assim como em “Pacto Sinistro”(1951) na acentuada relação edipiana do vilão Bruno Antony (Robert Walker) com a sua amalucada mãe e ódio pelo autoritário pai. Não só nestas três grandes obras-primas de Hitch temos esta conexão, mas em diversos outros filmes, também grandiosos, principalmente em seus cinco filmes que fez no melhor momento de sua carreira, de 1959 a 1964, ou sejam: Vertigo, Intriga Internacional, Psicose, Os Pássaros e Marnie. Apesar de todos os cinco filmes serem muito próximos na temática edipiana vou separá-los em uma trilogia em que os protagonistas masculinos são o cerne desta análise, já que em os Pássaros e Marnie as protagonistas são femininas.
Durante quase toda a carreira de Hitchcock, seus filmes eram apontados pelos críticos estadunidenses como meros divertimentos sem profundidade, dirigidos por um gordinho que gostava de dar sustos e contar piadas de humor negro. Era apreciado apenas como um mero técnico e devido a esta falta de reconhecimento artístico, foi desdenhado vergonhosamente nas premiações e resenhas críticas. Na verdade muito de seus filmes eram atacados em duras críticas por alguns “especialistas da sétima arte” o que levava a Hitchcock se defender com o seu típico humor ao responder estes ataques em frases como: “Vou transtornado em lágrimas, lendo sua crítica contra meu filme, em direção ao banco, para sacar o enorme lucro que o mesmo me proporcionou”. É claro que Hitchcock no fundo ficava muito decepcionado com a falta de reconhecimento da grandeza de sua obra, que revolucionou em diversos momentos na história do cinema, e os avanços que sua técnica inovadora legou a sétima arte, isto sem falar da gigantesca profundidade semiológica de seus filmes, que hoje são estudados por psicanalistas, filósofos e estudiosos de cinema. Isto mudou, quando jovens críticos e aspirantes a cineastas na França colocaram Hitchcock e outros diretores subestimados, como Hawks, Aldrich, Welles, Chaplin, Keaton, como mestres e verdadeiros autores cinematográficos, apesar do forte e intimidador Sistema de Estúdios de Hollywood. Estes críticos franceses, conhecidos como os Jovens Turcos, liderados pelo teórico Andre Bazin, da famosa revista Cahiers Du Cinema, reabilitaram a carreira de Hitchcock, através de análises fílmicas profundas de Rivette, Chabrol, Godard e principalmente François Truffaut, que realizou juntamente com o mestre do suspense, uma série de entrevistas em 1962, que depois foram reunidas no antológico e fundamental livro, guia para todos os estudiosos de cinema, Hitchcock-Truffaut Entrevistas. O livro foi publicado em 1966, mas foi reeditado contendo as entrevistas que cobriam os últimos filmes do mestre. A partir deste livro Hitchcock passa a ter o reconhecimento que merecia que o levou a ser celebrado pela sua carreira em diversas premiações como o Prêmio Irving Talberg no Oscar de 1967, o Prêmio Cecil B de Mille em 1972 (Globo de Ouro), O Bafta Fellowship Award em 1971, em 1968 o Directors Guild of America Life time Achievement Award, e AFI Life Achievement Award em 1979.
As informações que prestei sobre sua carreira são essenciais nesta análise, porque a vida pessoal, sua própria família(sua esposa Alma era roteirista e grande parceira de idéias, e sua filha Patrícia era atriz e chegou a atuar em dois de seus filmes), se confundem com sua obra e seu amor a seu oficio. É sempre bom lembrar também de sua infância, sua educação rígida em uma escola de jesuítas e o famoso episódio em que o seu pai lhe pediu, quando tinha 5 anos, para ir à delegacia com um bilhete que pedia ao delegado que o trancasse em uma cela e lhe dissesse: “Isso é que acontece com meninos desobedientes”. Não por acaso, pessoas acusadas injustamente por um crime são um tema recorrente em sua obra, como nos filmes Os Trinta e Nove Degraus (1935), Sabotador (1942), O Homem Errado (1956) e Intriga Internacional (1959).
1: Cena de Alfred Hitchcock presents

Hitchcock, que sempre foi gordo e tímido, também usou o cinema para ilustrar seus fetiches, seu romantismo reprimido, sua malícia sensual, a sublimação de sua raiva, seu humor mórbido e sua predileção pelo macabro. Também usou todo o seu conhecimento estético, suas obsessões, seus traumas e complexos como um confessionário psicológico, usando a câmera, atores, música, cenários, figurinos, adereços como um psico-drama e divã cinematográfico.
Bom, então vamos aos três filmes em questão: Vertigo, Intriga Internacional e Psicose, e suas aproximações com a psicanálise e ao Complexo de Édipo.
O incidente da delegacia é claro que legou a Hitchcock uma fobia para o resto de sua vida, o medo de policiais, que é retratado em praticamente em todos os seus filmes, além da educação católica rigorosa, medo e temor do pai (que provocou o trauma), sua forma física que gerou timidez e pouca habilidade para seduzir mulheres belas e loiras, seu maior fetiche, foram o torvelinho de ansiedade, medo que perseguiu sua vida e foi sublimado em sua arte. Para entender Hitchcock temos que entender suas fobias e suas obsessões. Fobia, de phobos, deusa grega do medo, pode ser definida como um medo persistente e irracional que resulta em um evitamento consciente da atividade, situação ou objetos específicos temidos (Vilela, 2005).
Para a perspectiva psicanalítica, inicialmente, observa-se que a fobia tem como elementos principais o medo e a angústia, cuja ocorrência é dada por um recalcamento pela formação de símbolos, os quais são escolhidos pelo paciente depois de um evento traumático pois, assim, ele pode retirar da consciência uma representação indesejável e transformá-la em uma representação fraca, mudando o seu afeto para outros objetos (Gurfinkel, 2001). Antes de prosseguir com as considerações de Freud e alguns de seus seguidores sobre o tema aqui proposto, é pertinente destacar alguns conceitos relevantes para a discussão do assunto em tal teoria. O termo "afeto", por exemplo, já foi citado acima, mas pela formulação da assertiva não foi capaz de evocar algumas características da concepção lacaniana. Segundo esta visão, o afeto não é recalcado. Ao contrário, ele segue "deslocado, louco, invertido, metabolizado [...]e o que está recalcado são os significantes que o amarram" (Lacan, 1962/1963, p. 22). Dessa forma, a fobia manifesta-se já que o afeto, desamarrado, continuar a evocar os sentimentos desagradáveis que a representação recalcada não mais evoca, agora sob a forma de uma nova representação: o objeto fóbico. A angústia também se constitui como um importante conceito para a abordagem deste tema e, para tanto, refere-se a traumas localizados no processo de amadurecimento humano. Quando o evento traumático ocorre, defesas são organizadas a fim de se evitar que a angústia volte a ser experimentada (Santos, 2002) e é com esta finalidade que o afeto é direcionado para uma nova representação, culminando na seqüência para a produção do sintoma.
No caso de Vertigo, Um Corpo que Cai (1958), Scottie é um detetive aposentado que sofre de uma fobia conhecida por acrofobia, ou medo de altura, provocado por um trauma, ocorrido em uma perseguição que resultou na morte de um colega policial, por queda de um alto edifício, e que Scottie se sentiu responsável. Na psicanálise acrofobia esta associada a outro forte sintoma que é a impotência sexual. Não é à toa que Hitchcock sugere no filme diversos signos fálicos que causam, medo, castração ou mesmo desdém infantil. A torre da igreja hispânica (alusão aos Jesuítas, apesar de mosteiro) simboliza a impotência de Scottie, que não consegue subir as escadas em espiral (ou ter uma ereção) e salvar Madeleine (Kim Novak). As espirais do penteado do cabelo de Madeleine, também associadas a da sua avó, a suicida e fantasmagórica Carlota, que Hitchcock sublinha com sua câmera e olhar de Scottie as semelhanças no penteado e o hipnotizante coque em espiral.
2: Vertigo (1958) Madeleine contempla retrato de Carlota

Hitchcock sempre usou o signo da espiral em seus filmes, como na escrava (bracelete em forma de uma serpente) que um sedutor da película muda “The Ring”(1927) presenteia a namorada do protagonista, um boxeador apaixonado. Em Chantagem e Confissão (1929) a heroína, após matar em legítima defesa um estuprador, desce atordoada uma escadaria em espiral. Em a Sombra de uma Dúvida(1942), o Tio Charlie planeja a morte acidental da sobrinha em uma escadaria em espiral de madeira que levava ao seu quarto. Assim como a Espiral, outros signos, que remetem a fragmentação e torvelinho são sugeridos em sua obra, como o isqueiro com um símbolo de duas raquetes entrecruzadas, usadas como chantagem em Pacto Sinistro(1951), em contraposição ao signo do círculo que se opõe a espiral como os anéis (símbolo de união e perenidade) de The Ring (1927) e em Sombra de uma Dúvida(1942). Também em Pacto Sinistro(1951) temos uma das mais antológicas cenas finais do mestre, a do carrossel desgovernado em alta velocidade, onde acontece a luta entre o herói e o vilão. Talvez o maior signo de aflição e angústia nos filmes de Hitchcock seja o do medo de altura e a possível perdição dos protagonistas. Cenas de quedas e desta eminência acontecem em diversos filmes como no clímax do Museu Britânico em Chantagem e Confissão (1929), nos Alpes suíços em O Agente Secreto (1936), e na cena de Estátua da Liberdade em o Sabotador (1942). Hitchcock depois fez uma importante revisão destas clássicas cenas, constatou que a simples danação dos vilões em queda não provocariam o suspense desejado no público, mas sim a ameaça da queda dos protagonistas e heróis, como em Suspeita (1941), Quando Fala o Coração (1945), Vertigo (1958) e Intriga Internacional (1959). Perseguições de carro em alta velocidade em estradas com muitas curvas também viraram marcas registradas e signos de impotência e angústia em filmes como Interlúdio (1945), Suspeita (1941), Ladrão de Casaca (1955) e Trama Macabra (1975). O épico ataque do avião a Cary Grant em “Intriga Internacional”, e os ataques dos pássaros, usando a perspectiva da câmera subjetiva, como se fosse o olhar de Deus, ou na verdade o do Diabo, como acreditavam os antigos gnósticos, sugere um olhar divino, implacável e cruel sobre a humanidade. Este plongée divino é também encontrado na fuga de Cary Grant do prédio da ONU, como um olhar debochado de Deus encarando os homens como meras formigas ou títeres desesperados. A própria ideia da queda ou ameaça da queda tem evocações bíblicas, com a queda de Adão e Eva do Paraíso, que são obrigados a amadurecer, abandonar a infância e encarar uma vida de trabalho, família, velhice e morte.
3: Plongée ONU

Esta queda ou necessidade de amadurecimento é o cerne de muitos filmes de Hitchcok. Chabrol já dizia que alguns filmes de Hitchcock são contos de fadas para adultos, sobre a necessidade de amadurecimento e superação de traumas e fobias. Talvez o mais representativo que vem a mente é Rebecca (1940) que conta a história de uma Cinderela depois do final feliz, que não tão feliz era assim, mais próximo de um pesadelo. Outro é Quando Fala o Coração (1945) filme declaradamente psicanalítico sobre trauma infantil e superação de uma neurose.
Em Vertigo vemos Scottie, um aposentado que é cortejado por uma bela amiga, mas não se deixa ser seduzido, preferindo ficar solteirão, brincando com sua bengala (outro símbolo fálico) que a faz precipitar pelo ar, como um brinquedo, reforçando sua impotência sexual. Este medo de afetividade, ou simplesmente uma fobia sexual para não ter que se comprometer, casar e ter uma vida afetiva adulta, corrobora com a ideia de se proteger no Éden(aposentadoria) e ter que abandonar a infância. A queda, e o medo da altura, esta sempre eminente, quando brinca em seu escritório com uma pequena escada, que poderia subir mais um degrau, mas acaba por desfalecer, nos braços da amiga/mãe. O efeito de câmera que proporcionou uma imersão e sensação de vertigem de Scottie junto ao público foi bem engenhoso. Hitchcock mandou fazer uma maquete da escadaria da torre e acoplou uma pequena grua com a câmera embutida para fazer um movimento de travelling enquanto a mesma operava um zoom, fazendo um movimento inverso. Hitch tinha muito orgulho de ter criado este efeito com o diretor de fotografia Robert Burks, parceiro do diretor em diversos filmes.
4: Vertigo - Acrofobia de Scottie

O Score de Bernard Herrmann também auxiliou no torvelinho emocional do personagem e ao reforçar o sentimento de angústia nas crises de acrofobia. Os estudiosos: Rogério de Oliveira Sobreira e Anselmo Guerra dão uma luz sobre a grande contribuição de Herrmann para este filme:
“Ao chegar em Hollywood, Bernard Herrmann revolucionou tanto a maneira de se compor quanto a maneira de se gravar a orquestra, um dos exemplos mais destoantes do estilo estabelecido era o de repensar o papel do Leimotiv no universo cinematográfico. Desde seus primeiros filmes, Bernard Herrmann exprime de forma clara seu desejo de explorar e repensar quais as funções da música no universo cinematográfico em ascensão. Ao contrário de temas longos marcados pelo sentimentalismo, a música de Herrmann se preocupava com outros aspectos da narrativa, como a unidade da trama como um todo e, principalmente, a visão do subconsciente dos personagens. Para atingir tais metas, seu estilo foi sofrendo gradativamente alterações. Em parceria com Alfred Hitchcock, Herrmann concebeu a música de 8 filmes, resultando em clássicos do cinema do século XX. Temas como psicose, ansiedade e acrofobias proveram um ambiente ideal para as criações e experimentações de Bernard Herrmann. Outro padrão recorrente é a utilização de técnicas de orquestração até então obscuras para enfatizar as emoções dos personagens na tela. Ao contrário de Max Steiner, que utilizava como recurso para cenas românticas um uso excessivo de vibrato no naipe de cordas da orquestra, reafirmando a carga emocional já representada nas telas, Herrmann sempre instruía os músicos a executarem passagens inteiras com pouco ou até mesmo sem vibrato tanto na sessão de cordas quanto na sessão de madeiras, resultando em um som denso, que combinado com as imagens, resulta no aprofundamento da esfera psicológica da trama. Outro padrão recorrente na obra de Bernard Herrmann é a utilização de ostinatos na construção de suas trilhas. Como exemplo podemos facilmente citar as aberturas dos seguintes filmes: Psicose (1960), sendo baseado na repetição de motifs na sessão de cordas; Um Corpo que Cai (1958), no padrão rítmico e melódico recorrente de harpas e vibrafone; Intriga Internacional (1959), nos tímpanos e pratos. Podemos também observar que além do uso de ostinatos e a utilização de métodos pouco ortodoxos de orquestração, uma última característica fundamental que Herrmann sempre utilizou em sua carreira foram movimentos de acordes paralelos. Na maioria das vezes, instrumentos como Clarones (um dos favoritos de Herrmann) e Clarinetes executavam movimentos cromáticos de quintas ou quartas paralelas, criando uma constante ambigüidade tonal em suas obras, artifício completamente válido para representar personagens com distúrbios de personalidades. A abertura do filme, criação visual do design gráfico Saul Bass, tem como função “preparar” o público para a história que será exibida. Iniciando com diversos closes em preto e branco em partes do rosto da atriz Kim Kovak e, em seguida, ao aparecer o título do filme, toda a imagem se torna vermelha. Após isso, a animação de Bass apresenta espirais das cores azul e verde acompanhando os créditos. A música de Bernard Herrmann também acompanha o padrão cíclico das espirais. Indo completamente contra a tradição da época, a música de Herrmann se preocupa com a fragilidade interna das personagens. Ao contrário das fanfarras explosivas que compositores como Alex North (Spartacus e Cleopatra) e Alfred Newman utilizaram exaustivamente, o ostinato acima é tocado pela sessão de cordas acompanhada sutilmente por vibrafone, harpa e celesta. O movimento ascendente e descendente das duas linhas melódicas tem como função ressaltar o sentimento cíclico de ansiedade e neurose que o personagem de James Stewart irá passar pelo filme. Um dos temas principais de “Um Corpo que Cai” é a obsessão do personagem em transformar uma pessoa em outra. A cena inicial se mostra como “resumo” dos principais conceitos do filme. Espirais e a constante repetição de padrões são temas que a música de Herrmann reflete de forma sutil e efetiva, atingindo o subconsciente do espectador.”
5: Bernard Herrmann -Hitchcock

Voltemos a trama de Vertigo:
A trama se inicia quando Gavin, um antigo colega de faculdade de Scottie, o contrata para seguir sua mulher, Madeleine (Kim Kovak), que afirma estar sendo possuída por um espírito suicida. Ao aceitar o caso, Scottie segue a mulher em vários lugares de São Francisco, inclusive em uma sepultura de uma mulher chamada Carlota Valdes. Scottie também a segue até um museu com um retrato de Carlota.
6: Retrato de Carlota

Um historiador no museu explica que a mulher da pintura possuía a mesma idade que Madeleine quando suicidou. Durante vários minutos do filme,se desenrola a observação cautelosa de Scottie a Madeleine. Hitchock, um grande fã do “Cinema Puro”, assim como os teóricos de cinema como Jean Epstein, André Bazin e Krakauer, consegue realizar nestas cenas, em que Scottie segue Madeleine, o melhor desta narrativa estritamente visual e sonora, sem diálogos. O filósofo e psicanalista Slavoj Zizek em sua abordagem sobre estas sequências de Vertigo descreve o fascínio que Madeleine exerce sobre Scottie, desde o primeiro momento quando observa a silhueta de seu perfil no restaurante, pelas ruas de São Francisco e principalmente quando a observa secretamente em uma fresta de um umbral em uma floricultura. A imagem de Madeleine emoldurada pelo colorido de diversas flores, que simbolizam tanto o sexo feminino como a ornamentação mortuária, é expressa no olhar de Scottie como um sentimento de curiosidade quase infantil, fascínio e morbidez voyeur, como um menino que flagra os pais pelo buraco da fechadura.Este umbral, onde Scottie observa a imagem radiante de Madeleine, contrasta violentamente com as cores da loja, com pouca iluminação, de cor cinza, sujo, apertado, que simboliza o papel escuso e voyerista do detetive. Scottie olha através deste umbral um mundo quase icônico, sagrado e idealizado.
7: Madeleine na loja de flôres.

A fantasmagoria da personagem Madeleine, o fato de se comportar como uma sonâmbula, com olhar perdido, como uma títere de um espectro ancestral e sua fascinação pela avó, visitando os lugares em que viveu, morreu e foi enterrada ajudou a criar uma áurea de obsessão mórbida em Scottie, tais quais os personagens masculinos de Edgar Allan Poe, autor que influenciou Hitchcock em filmes como Psicose e Pássaros. Mesmo Madeleine é uma homenagem às personagens catalépticas dos contos do mestre do Macabro (Madeleine é nome de uma de suas heroínas).Este espírito obsessor de Carlota Valdes reforça a ligação edipiana que Scottie tem com Madeleine, já que no filme não há nenhuma menção de que sua mãe estava viva, ou quanto foi presente na sua vida. É bom lembrar que Vertigo foi baseado no livro D’Entre lês Morts (Entre os mortos, tradução livre) dos autores Pierre Boileau e Thomas Narcejac. Neurose e perversões como necrofilia, voyeurismo, melancolia mórbida e complexo de édipo estão misturados e manifestados no interior do personagem Scottie e expressados pelo ator James Stewart em uma atuação magnífica, uma das mais marcantes de sua carreira. Estas pulsões neuróticas estão também no conjunto das técnicas usadas no filme, como: a fotografia, direção de arte, o genial figurino de Madeleine pela brilhante estilista Edity Head, música, atuações e principalmente na direção de Hitchcock, que considerou este filme o mais pessoal de sua carreira, o que falava mais a sua alma. O filme também tem uma rigorosa disposição de planos que separam os personagens de Scottie e Madeleine, como se fossem proibidos de se unirem, que provocou críticas sobre o universo misógino retratado nas cenas. Mas esta rigorosa separação e posicionamento dos personagens reforçam a ideia de proibido, necrofilia e até incestuosidade. Scottie é atormentado por estes sentimentos inconscientes que são representados na sequência do pesadelo. A música desta cena, inspirada no ritmo da Habanera, gênero musical hispânico, evoca a descendência latina da avó, Carlota Valdes, que junto à animação de Saul Bass, às imagens de sua perseguição a Madeleine, com fortes cores verdes saturadas e mais a cabeça flutuante de Scottie em direção ao abismo, celebram a orgia da angústia, tabus e pavor em uma cena verdadeiramente antológica.
8: Pesadelo de Scottie

Após continuar sua perseguição a Madeleine, Scottie tem que salva-la de um afogamento no mar, em uma tentativa de suicídio da jovem. Nesta cena também memorável, sob a ponte Golden Gate,Madeleine usa um lindo vestido negro, com um lenço de seda branco esvoaçante que, em transe, fica despedaçando pétalas de flores na água e logo depois se joga.
9: Madeleine abaixo da Ponte Golden Gate

10: Madeleine e o lenço de seda branco

Em seguida, Scottie leva Madeleine inconsciente até ao seu apartamento, após salva-la do afogamento. Após um fade, Madeleine já acordada, usa um roupão vermelho (cor da emoção e sexualidade) em frente à lareira,e os dois passam a se conhecer e trocam informações. Fica evidente que Scottie teve que tirar a roupa molhada de Madeleine e conheceu o seu belo corpo nu. O seu olhar, misto de fascínio e desejo pela jovem seminua ao lado da lareira é contrastado pela sua postura corporal, que o impede de se aproximar e de tocá-la.
Após o ocorrido,Scottie se conecta profundamente a Madeleine, apaixonando-se por ela, porém suas tendências suicidas são mais fortes.Uma das cenas mais belas e fantasmagóricas do filme é ambientada em Muir Woods, à famosa reserva de sequóias gigantes, que se localiza depois de atravessar a ponte Golden Gate. Madeleine, usando um casaco cor de pérola sobre seu vestido longo e negro, aponta para um tronco cortado, atração de Muir Woods, que descreve séculos em seus anéis. Com o dedo indicador, coberto pela luva negra ela aponta dois pontos:“Aqui eu nasci, neste eu morri”.Esta cena é uma clara alusão ao fascínio romântico da morte, tema clássico dos romances góticos e românticos que inspiraram Shelley, Byron, Keats, Baudeleire e Poe, assim como constatamos em algumas das obras do próprio Hitchcock, melancólico e romântico.
Outra memorável cena entre o casal acontece na baía de São Francisco, com as ondas chocando-se nos rochedos, quando eles se beijam pela primeira vez. Essa, emoldurada na lírica e romântica música de Bernard Herrmann, tornou-se uma das maiores iconografias do cinema melodramático-expressionista-gótico, assim como aquela do Farol de “O Retrato de Jennie” (1948) de Willian Dieterle e da película “O Morro dos Ventos Uivantes” (1939) de William Wyler.
11: Memorável cena do beijo

Hitchcock conduz seu personagem e o público até o anunciado suicídio de Madeleine, na famosa cena da torre, dramática e vertiginosa. Nela, Hitchcock coloca o público dentro do olhar subjetivo do personagem e percebemos sensorialmente a sua repulsa pela altura (através dos efeitos óticos que já descrevi), e faz também sentirmos a impotência e culpa avassaladora por não termos conseguido evitar a trágica morte. Novamente, a música obedece ao padrão cíclico que permeia todo o filme. Construída inteiramente a partir de um ostinato cromático ascendente e descendente na sessão de cordas e madeiras, a melodia aponta o sentimento de perigo iminente. Por sua vez, a sessão de metais também realiza movimentos cromáticos de quintas e quartas paralelas, comprovando as preferências do compositor por técnicas não convencionais de orquestração.
Para aumentar e estigmatizar mais a culpa do ex-detetive, o juiz que conduz o processo que julga se foi suicídio ou não de Madeleine, profere afirmações duras a Scottie, dizendo que não existe processo contra negligência, dirigindo-se ao detetive que não soube protegê-la de sua fatal tentativa de autoextermínio. A abissal culpa levaria Scottie a um ano de tratamento de depressão profunda.
Scottie fica catatônico e extremamente depressivo por não ter conseguido evitar o pior, até que um dia encontra uma mulher parecida com Madeleine, porém vestida com roupas diferentes. Nesta cena Judy, a sósia de Madeleine, usa uma roupa bem mais leve, alegre e sensual, diferente dos vestidos fechados e conservadores e seus cabelos são castanhos.
12: Comparação Judy vs Madeleine

Em uma análise dos autores Alexandre Rodrigues da Costa e Bárbara de Souza Mandarano no Ensaio: Segunda Pele: uma análise do figurino do filme psicose de Alfred Hitchcock, temos as seguintes observações sobre os figurinos de Madeleine/Judy em Vertigo:
“Madeleine aparece vestindo o primeiro figurino do filme, um longo vestido de cetim preto e verde, um traje sofisticado que desperta uma paixão lancinante em Scottie por Madeleine. Para Torres (2012), a sofisticação do traje serve não só para encantar, mas para provocar um distanciamento entre os dois personagens que vivem realidades distintas: um ex-detetive aposentado e solteiro e uma mulher casada e rica.O segundo figurino de Madeleine é um tailleur cinza, pensado por Hitchcock para expressar a alma da personagem do filme, uma mulher misteriosa. Torres(2012) afirma que a construção do figurino da cena toma um rumo interessante porque, ao mesmo tempo em que delineia a ambientação psicológica da personagem, fazendo acreditar que ela age em relação às lembranças do passado,esconde a verdadeira identidade de Madeleine. Assim, sua caracterização faz crer que ela é única em todas as suas ações, como se mantivesse um comportamento linear durante todo o filme.Em outro momento do filme, quando descobrimos que Madeleine na verdade é Judy, tentando esconder sua identidade, a personagem aparece usando um traje verde que, para Torres (2012), é a cor que simboliza a “aura” de Madeleine, ou, em uma interpretação mais coerente com a trama do filme, possui semelhanças com a luz do fogo fátuo, como a assinalar o aspecto mórbido que resultará da paixão de Scottie por ela, como pode ser visto, quando Madeleine “retorna dos mortos”, banhada pela luz verde dos neons, no quarto de hotel. A cor do figurino de Judy faz menção a Madeleine, porém suas roupas nada lembram os trajes elegantes usados por ela, sendo o estilo da personagem uma marca de indefinição de quem realmente é. Seria Judy uma mulher vulgarizada pelo excesso de maquiagem e Madeleine uma personagem construída apenas para causar encantamento, sem nada em comum com a verdadeira Madeleine que é assassinada? Onde estariam as verdadeiras Madeleine e Judy, se o que temos é a construção de uma mulher que se oferece como engodo e, em um segundo momento, se torna outra pessoa, escondida nomeio da multidão, sem traços que revelem seu duplo, sua identidade sobre o espelho? Para E. M. Cioran, “um ser sem duplicidade não possui profundidade e mistério; não esconde nada. Só a impureza é sinal de realidade” (CIORAN, 1989, p. 29). Por meio do duplo, é possível, portanto, explorar os limites da realidade e da ímaginação, apagando a tênue linha que os separa através da inserção do extraordinário no cotidiano, de tal maneira que vida e morte, finito e infinito, se entrecruzam e fundam a ilusão. A partir desse momento, o que temos é um lugar onde nada se fixa, onde o encontro com o outro se aproxima do sonho, da loucura.”
13: Judy e Scottie no quarto de hotel. A luz do neon verde remete a fantasmagoria de Madeleine

A partir deste encontro Scottie assedia Judy e a convida para um jantar. Os dois passam a se ver constantemente, iniciando um relacionamento amoroso.
Mas antes temos a revelação através de um flashback da memória de Judy, quando tenta escrever uma carta confessando a sua participação do engodo criminoso.Na carta ela revela que foi um dublê usado pelo marido de Madeleine e usou da fobia de Scottie para testemunhar o falso suicídio. Esta revelação é importante para o público que sofria com a culpa de Scottie e agora vai acompanhar e torcer para que o detetive também descubra o que realmente aconteceu, já que Judy rasga a carta confessional. Uma de suas regras básicas de Hitchcock é de que o suspense só funciona se o público estiver em vantagem e conhecimento à frente do herói do filme. Esta regra ajuda o público a interagir com o filme, propiciando uma dinâmica emocional e de pensamento, algo como Deleuze descreveu como Cine-pensamento, uma construção e caracterização da imagem-perceptual no sistema de imagens do cinema. Hitchcock rompe com tradicional montagem invisível própria dos Sistemas de Estúdio e através de movimentos de câmeras, variação de lentes, zoons e closes epidérmicos, valorizando objetos de cenas e outros recursos estilísticos, uma narrativa sensorial e estritamente visual e sonora, capaz tanto de oferecer uma imersão do público dentro dos olhos do personagem, assim também como co-participativo na ação, ao refletir, pensar e até imaginar, já que Hitchcock deu este poder de conhecimento prévio e onisciente sobre o personagem. É verdade que Hitchcock manipula, mas deixa também o seu público livre para pensar. Até mesmo os famosos backgrounds de tele-projeção e cenários pintados, usados abundantemente em seus filmes, alertam ao público de que tudo o que vê é apenas uma película cinematográfica, chegando próximo de um distanciamento brechiniano. O Sistema de Estúdios não gostavam que seus diretores chamassem muito a atenção com estilização de ângulos, lentes e outros artifícios. O diretor de Hollywood deveria ser invisível, quase blasé. As estilizações poderia distrair o espectador da trama principal. Apenas em gêneros do cinema Noir e Horror eram permitidos tais distrações, pelo aspecto psicológico destes filmes, que retratavam monstros, criminosos, neuróticos e loucos. Hitchcock sentiu-se muito mais a vontade fazendo estes gêneros e trabalhando para produtoras como a RKO, para ter mais liberdade e dirigir como ele queria. Assim como ele, outros diretores que eram conhecidos como peculiares pelo excesso de travellings e ângulos estranhos, todos eles, na maioria saídos do cinema europeu e do expressionismo alemão, e procuraram abrigo e liberdade de expressão em Estúdios menores, para produzirem filmes de horror, suspense e noir. Quase todos conheciam na pele o horror das perseguições nazistas e estes gêneros cinematográficos eram veículo para traduzir o pesadelo que estava acontecendo na Europa, tanto nos períodos do pré, entre e pós guerra. Artistas como Ulmer, Fritz Lang, Siodmack, Billy Wilder e muitos outros se alinharam e ficaram a frente destes filmes de temor, horror e angústia.
Uma observação importante que quero fazer, antes de darmos continuidade da análise de Vertigo, é a de salientar sobre a ausência da figura paterna dos personagens masculinos centrais nos três filmes em questão, o que solidifica a simbiose edipiana. A figura materna em Vertigo também é ausente reforçando mais ainda o mistério e a atração mórbida por uma mulher do passado. Esta ancestralidade fantasmagórica feminina é o subsídio do enigmático fascínio de Scottie por Madeleine/Carlota, um anelo fantasista por uma mãe idealizada no inconsciente, e o engessamento emocional de Scottie de se envolver afetivamente por uma mulher normal e romper com suas fobias castrativas e regressivas. A possibilidade de se apaixonar por Judy seria uma libertação para Scottie, mas ele se torna obcecado em transformá-la em sua amada morta.
14: Mosaico da transformação de Judy em Madeleine

Talvez este momento seja o mais crucial do filme, o que mais seduziu Hitchcock em realizar este projeto, a de transformar uma mulher em outra, na do objeto de desejo mais íntimo. É conhecido que Hitch queria a atriz Vera Miles como Madeleine/Judy e ficou muito chateado quando descobriu que ela, grávida, não poderia fazer o papel. A obsessão pela atriz remonta um fetiche de sua carreira por loiras e belas (Ingrid Bergman, Grace Kelly, Joan Fontaine) e de como ele recorria a uma parceria com estas atrizes, e de como ele gostava de moldá-las para o seu tipo feminino ideal. Também é conhecido que Hitch se apaixonava por estas atrizes e chegou a perder a linha com algumas, principalmente com a inexperiente Tippi Hedren, que trabalhou nos filmes: “Os Pássaros” e “Marnie”, inclusive moldando-a no perfil de Madeleine (penteado e figurino parecido). Esta obsessão casou com a trama de Vertigo. Assim como Scorsese menciona, um dos temas principais de “Um Corpo que Cai” é a obsessão do personagem em transformar uma pessoa em outra.
Este tema de transformar pessoas, ambientes, épocas é a própria essência do Cinema como arte e o diretor como um Deus deste mundo. Hitchcock não era um diretor que concedia liberdades aos atores e técnicos para mudar o que já estava no roteiro e na sua cabeça. Ele mesmo dizia que a parte mais chata era a produção de um filme, pois tudo já estava pronto na sua mente. Raramente na história de seus filmes aceitou inovações ou sugestões contrárias do que já tinha estabelecido.Uma das raras mudanças foi a cena do chuveiro de Psicose, que estava previsto ser editado sem música, mas pelo conselho de Alma, sua mulher, a inclusão do tema musical de Herrmann deixaria a cena bem melhor e mais dramática.
15: Silueta de Judy sob a luz verde espectral

16: Scottie pede a Judy fazer o coque no cabelo

Quando Scottie leva Judy para o quarto de hotel, usando o tailleur cinza, com o cabelo tingido de loiro, ele insiste que ela também deveria prender o cabelo em coque. Na entrevista de Truffaut sobre o filme, Hitchcock revela que o fato de Scottie impor a Judy a fazer este penteado era como se ele estivesse pedindo para a amante tirar a calcinha. Ela faz isto no banheiro e aí temos a mais célebre cena do filme, que dá conteúdo ao título do conto “Entre os Mortos”: Judy/Madeleine surge inundada pela luz neon verde, como se ressurgisse do mundo dos mortos e Scottie a beija, enquanto a câmera circula o casal em uma espiral espectral. A música neste momento é significante. Em uma sequência completamente sem diálogos, a música se torna um terceiro personagem,onde Herrmann se inspira em Richard Wagner, particularmente na Liebestod da ópera Tristão e Isolda, que também conta a história de um amor proibido e maldito.Este lírico tema romântico descreve uma sequência repleta de cromatismos e reafirma o padrão cíclico do filme.
17: Beijo e o insight de Scottie

Durante o beijo, ele tem alguns insights sobre a morte de Madeleine.No auge de sua loucura, Scottie a leva no mesmo lugar em que ela se matou, o alto de uma torre.Judy então confessa que era Madeleine e que foi paga pelo marido para se passar sua mulher enquanto Gavin matou a verdadeira esposa. Logo após a revelação algo a assusta causando seu desequilíbrio e sua queda, ocasionando sua morte. Esta aparição era a de uma das freiras do convento que surge como figura austera e símbolo religioso de castração. Para Scottie este amor estava condenado por questões morais e éticas. Judy era uma criminosa e deveria ser entregue a justiça. Mas para os significados psicológicos e simbólicos do filme fica claro que as pulsões edipianas ou necrófilas estão em cheque e Scottie terá que aprender a viver sem o seu objeto de amor.
Hitchcock, que era católico e teve uma severa educação em colégio Jesuíta, levou este sentimento de religiosidade e culpa judaico-cristã para os seus filmes. O mais conhecido dentro desta temática foi “A Tortura do Silêncio” (1953), mais uma trama sobre um inocente culpado por um crime que não cometeu. Neste caso o inocente é um padre, interpretado por Montgomery Clift que, por fidelidade aos seus princípios religiosos, não pode falar sobre o verdadeiro assassinato que tomou conhecimento num confessionário.O mesmo teve que ficar calado e não pode se defender sofre os algozes e perseguição, tal qual Cristo, representado em uma cena de calvário em que Clift sobe uma ladeira de Montreal e por um momento encara uma imagem de Cristo numa vitrine, como se estivesse na mesma situação de expiação, pelos pecados alheios. Esta imagem da paixão e sofrimento de Cristo também esta representado em um dos seus primeiros filmes, O Inquilino - The Lodger (1927), em que um suspeito de ser um serial-killer é algemado em uma cerca alta e pontiaguda, lembrando as imagens de calvário. Outro filme, também representativo é “O Homem Errado” (1956), outra história de inocente falsamente acusado, que em determinado momento o personagem interpretado por Henry Fonda reza junto a uma imagem de Jesus Cristo e milagrosamente, neste exato instante, o verdadeiro culpado é identificado e preso.
18: Imagens de Homem Errado (1956) e A Tortura do Silêncio (1953).

O vilão do filme, Gavin, tem participação episódica, mas fundamental na trama. Ele comete o crime perfeito, como um demiurgo, um titeriteiro movimentando as cordas de Scottie e da falsa Madeleine. Como um Deus onisciente acompanha a saga obsessiva de seu colega detetive e o conduz ao abismo de culpa e perda. Naturalmente sabia das predileções sexuais e que tipo de mulher fascinava Scottie. Ele escolheu as roupas, lugares, as posturas da falsa Madeleine, a história fantasmagórica como um Mefistófeles seduzindo Fausto com a jovem Margarida.
19: Scottie e Gavin

A figura patriarcal de Gavin, um aventureiro que se casou por dinheiro com uma jovem herdeira de um enorme estaleiro sem parentes vivos, remete aos vilões clássicos de Hitchcock, repletos em uma galeria de pessoas ricas, sofisticadas, calmas, amistosas e bem educadas, mas que no íntimo se revelam frias e calculistas. Hitchcock já dizia que os vilões caricatos de Hollywood nada se parecem com os da vida real, que são sedutores, cativantes e implacáveis. Talvez a figura paterna tenha deixado estas marcas indeléveis no imaginário de Hitchcock, tal qual Totem e Tabu, o chefe tribal, patriarcal, que detinha todo o poder, mulheres e propriedade, mas também encarnava na figura do rico capitalista, com a típica e educada fleuma inglesa. Seu pai, por sinal, era um comerciante de classe média alta, capaz de fazer brincadeiras como a de deixar o filho de cinco anos na prisão.
Gavin, em um dos momentos do filme comenta a Scottie de estar entediado com a São Francisco dos anos 50, que sentia uma nostalgia pela cidade de 100 anos atrás, cheia de disputas, golpes e masculinidade tóxica.
Vertigo, apesar de um triunfo artístico, foi um fracasso comercial. Não chegou a ser compreendido nem pela crítica da época, que o consideraram obscuro e até doentio. Uma pena porque o filme ficou confinado por mais de vinte anos nas prateleiras da Universal e redescoberto e novamente entrado em circuito nos anos 80, quando passou a ter prestígio como a obra-prima de Hitchcock e entrar na lista dos melhores filmes já feitos, eleito por uma centena de realizadores e críticos do mundo inteiro, na famosa eleição decenal da revista Sight e Sound. Em 2010 foi considerado, justamente, o melhor filme da história. Pena que o mestre não estava presente para assistir o prestígio de seu filme mais íntimo.
20: Efeito da vertigem na escada da torre.

Intriga Internacional
“As coisas invisíveis são as únicas realidades”.
(Edgar Allan Poe)
21: Roger Thornhill e EveKendal

O segundo filme da trilogia é um dos filmes mais amados e divertidos do mestre. Uma película que foi um marco e pedra divisória no cinema de ação, espionagem e aventura. Mas como pode se esperar de uma obra-prima de Hitchcock tem muito mais que cenas de suspense, socos e perseguição.
Intriga Internacional ou North By Northwest (título em inglês), que Hitch fez e distribuiu em 1959, logo em seguida de Vertigo(1958), apresenta uma trama totalmente diferente de seu antecessor. No lugar de um neurótico, amargurado e romântico ex-detetive com pulsões necrófilas, o protagonista de Intriga é um bem sucedido alto-executivo de uma empresa de Marketing em New York. O filme começa frenético, com os créditos de Saul Bass, com linha nervosas de cores verdes, entrecortando um dos altos edifícios de Wall Street, cenas de correria de pessoas indo ao trabalho, saindo do metro, entrando em ônibus lotados (a aparição cameo de Hitchcock é a da frustrada tentativa de entrar em um destes ônibus), muito diferente da hipnótica abertura de Vertigo, em cores vermelhas, espirais e closes em olhos e boca. Logo em seguida temos Roger Thornhill, Cary Grant, saindo de um elevador, na habitual interpretação do ator, elegante, vestindo um excelente terno, bronzeado, com fala ligeira e fazendo observações divertidas com a sua secretária que o acompanha para pegar um taxi na rua. Seu jeito malandro e jovial, apesar dos 60 anos de idade quando fez o papel, confere uma personalidade carismática, mas também maliciosa e manipulativa quando engana um pretendente a vaga preferencial no taxi, lubridiando-o, de forma charmosa. Também, em um diálogo com sua secretaria no interior do taxi, é revelada a sua superficialidade e imaturidade, quando a pergunta se estava gordo (Gary Grant estava em forma física impecável, neste papel). Bem sucedido, charmoso, leve, Thornhill é o oposto de Scottie, mas isto comparado superficialmente. Assim como o personagem de Vertigo, também é imaturo com relacionamentos amorosos, preferindo ficar solteiro, apesar de Thornhill ter ex-esposas no passado. Tem uma simbiótica e edipiana relação com mãe, Clara Thornhill (a atriz Jessie Landis tem a mesma idade de Grant) e sua dinâmica com ela era a de um meninão, em busca de aceitação e parceria inusitada, parecido com a relação de Scottie com a sua amiga, confidente e ex-noiva.
A trama é talvez a mais maluca dos filmes de Hitchcock (que era acusado pelos críticos de não ter nenhum respeito à verossimilhança), e neste em específico chutou o “pau da barraca”. Ela tem início, depois da apresentação do personagem principal, em um lobby de hotel, quando Thornhill reunido com alguns amigos, quando lembra que tinha que passar um telegrama urgente para a sua mãe (sua fixação edipiana já é revelada na seqüência do taxi e passa orientações a sua secretaria sobre sua mãe). Por coincidência, quando Grant resolve providenciar o telegrama, um bellboy anuncia que tinha uma chamada para um tal de George Kaplan, que chamou a atenção de duas pessoas de aparência hostil, que associaram Thornhilla Kaplan, no momento que Thornhill acena para o bellboy para informar sobre o telegrama. Grant é assediado pelos dois, que estavam armados e o sequestraram até um carro que seguiu em direção a uma Mansão no litoral do Estado.
22: Thornhill é abordado

Lá encontra o vilão do filme de aparência sofisticada, elegante, quase como um reflexo de um espelho de Thornhill, Phillip Vandamm, interpretado pelo não menos elegante e charmoso James Mason (um dos melhores vilões de Hitch). Os dois se olham, circulando um ao outro como se fosse um espelho. Existem muitas semelhanças entre Vandamm e o vilão de Vertigo, que aspirava nostalgicamente a uma época de um capitalismo selvagem e sem leis, mas aparentam cordialidade e bons modos. O lado truculento e de masculinidade tóxica de Vandammé desdobrado em outros vilões que ele comanda como o do seu secretário Leonard, Martin Landau, alto, esguio, encurvado, sexualidade dúbia (parece ser apaixonado pelo seu chefe) e com um olhar sinistro como de um corvo, além dos dois brutamontes que assediam Thornhill. Vandamm faz perguntas a Thornhill como se fosse Kaplan, suspeito de ser um agente do governo que estava investigando as ações criminosas de seu grupo. Neste momento Grant está sentindo que sua vida esta virando de cabeça para baixo, ilustrado nas surreais sequências em que Leonard e seus capangas embriagam forçosamente Thornhill e o deixam guiar um carro conversível por uma estrada sinuosa à beira de um precipício.
23: Thornhill dirigindo bêbado.

Cenas de perigo que já foram usadas em outros filmes de Hitch. Slavoj Zizek, em seu livro Lacrimae Rerum, descreve paralelos e repetição de cenas nos filmes de Hitchcock:
“também encontramos motivos visuais, ou de outro tipo, que se impõem por meio de uma estranha compulsão e que se repetem de filme para filme, em contextos narrativos totalmente diferentes. O mais conhecido é o motivo que Freud chamou de Niederkom-menlassen, ou deixar-se, com todas as suas conotações de queda suicida melancólica. Uma pessoa que
se agarra desesperadamente à mão de outra: o sabotador nazista que se agarra à mão que o bom herói norte-americano lhe estende do alto da tocha da Estátua da Liberdade em Sabotador. Na confrontação final de Janela indiscreta, o fisicamente diminuído James Stewart, pendurado na janela, que tenta agarrar a mão de seu perseguidor, o qual, em vez de ajudá-lo, esforça-se para fazê-lo cair; em O homem que sabia demais (1955, remake), no mercado ensolarado de Casablanca, o agente
ocidental, moribundo, vestido de árabe, que estende a mão para o inocente turista norte-americano (James Stewart) e o puxa para si; o ladrão, finalmente desmascarado, que se agarra à mão de Cary Grant em Ladrão de casaca; James Stewart, que se segura à chaminé do telhado e tenta desesperadamente alcançar a mão que o policial lhe estende logo no início de Um corpo que cai; Eva Marie-Saint, que se agarra à mão de Cary Grant à beira do precipício (logo seguido do plano em que ela se agarra à mão dele no beliche do vagão-dormitório no final de Intriga internacional). Com um exame mais atento, percebemos que os filmes de Hitchcock estão cheios desses motivos. Há o motivo de um carro à beira do precipício em Suspeita e em Intriga internacional nesses dois filmes, há uma cena em que o mesmo ator (Cary Grant) conduz um carro que se aproxima perigosamente de um precipício;
embora os filmes estejam separados por quase vinte anos, a cena é filmada da mesma maneira, incluindo um plano subjetivo do ator, quando lança um olhar para o precipício. (No último filme de Hitchcock, Trama macabra, esse motivo assume a forma de uma longa sequência do carro cujos freios foram sabotados por bandidos e que desce a encosta a toda a velocidade.)”
24: Poe e Hitchcock

Assim como em Vertigo e Psicose, Hitchcock usa algumas ideias de Edgar Allan Poe, escritor que influenciou muito a sua obra e era um leitor voraz na sua adolescência. Em Intriga Internacional, Hitch usa o mito germânico do doppelganger (que significa “duplo ambulante”). Ele foi usado pela primeira em 1796, no romance Siebenkas, do francês Jean Paul (pseudônimo de Johann Paul Richter)em 1796. Nele, o protagonista é convencido por sua cópia a forjar a própria morte para se livrar da esposa. Este mito foi muito explorado no cinema expressionista alemão, em filmes como “As Mãos de Orlack” (1924) de Robert Wiene, “Metropolis” (1927) de Fritz Lang e o “O Estudante de Praga” (1926)Henrik Galeen (que teve três versões) claramente inspirado no conto Willian Wilson de Poe. As influências do cinema expressionista foram muito fortes e duradouras na obra de Hitchcock, desde quando foi aos estúdios da UFA para filmar um de seus primeiros filmes e ficou impressionado com Murnau, que estava filmando “A Última Gargalhada” em um galpão vizinho ao seu. Durante muito tempo Hitchcock, antes de começar rodar uma cena, em vez de dizer Action dizia “Acthung!”.

Vamos descobrir em algumas cenas seguintes que Kaplan, o suposto duplo de Thornhill, na verdade, era apenas um subterfúgio usado por uma agência de inteligência dos EUA (CIA), para despistar um grupo internacional criminoso da verdadeira identidade do agente infiltrado, a espiã Eve Kendall (nome bíblico da 1ª mulher), interpretada por Eva Marie Saint.
Figura 25: Eve Kendal com Roger Thornhill no quarto-vagão

Não foi gratuito Hitch batizar o nome da personagem que causa a danação de Thornhill de Eve, que foi pivô da expulsão de Adão do Paraíso. Assim como o 1º homem bíblico, o personagem de Thornhill cai em um torvelinho espiral de danação, uma queda existencial em proporções épicas. O charmoso executivo é expulso de seu mundo de superficialidade, dinheiro, posição e relacionamento de uma incestuosidade infantil com a mãe, também de personalidade juvenil e superficial como o filho, para um mundo de perseguições quase oníricas e vertiginosas, que chegam até criminalizá-lo, como veremos a frente. Este Deus que expulsa Thornhill de seu confortável Éden em Manhattan é o próprio governo dos EUA, que o faz confundir com um fantasma acossado. Em uma cena já comentada, vemos Thornhill fugindo do prédio da ONU, após ser confundido com o assassino de um secretário estadunidense, real dono da mansão. Na cena vemos Cary Grant em uma posição minúscula (naturalmente a cena foi feita em uma maquete e uma animação da figura de Grant fugindo). Do alto, acima do prédio temos a câmera subjetiva em plongée, como se fosse um olhar divino, acusador e perverso.
Novamente temos o tema da Queda como em Vertigo. Scottie/Thornhill são ambos arrastados de seu mundo superficial e confortável para uma danação gerada por um Deus ex-machina(Gavin/CIA), provocados/seduzidos por uma femme fatale (Madeleine/Eve) e cumprirem uma trajetória de auto revelação, superação edipiana e amadurecimento. A diferença principal é de que Vertigo é um noir gótico melancólico, com cenas longas e arrastadas como um sonho/pesadelo surreal. A personagem de Madeleine é hipnótica, cataléptica e mórbida, como num conto de Poe, já Eve é como Liltih (a verdadeira esposa de adão, competitiva e sedutora, que mais tarde provocaria a sua danação). Eve conhece Thornhill, quando estava fugindo da polícia e dos vilões em um trem. Estava usando um belo vestido com as cores invertidas de Madeleine, Casaco preto e vestido branco (nas cenas que Madeleine seduz Scottie ela usava um exuberante casaco branco e vestido branco). As cores são muito importantes para Hitchcok, principalmente as do figurino. Fica claro o significado das cores nos dois filmes, o preto como cor nefasta e destrutiva e o banco representando a pureza e redenção. Eve usa o casaco preto, já que era uma espiã que leva a danação de Thornhill, mas apenas como segunda pele, pois a cor de baixo é branca, o verdadeiro caráter da personagem, que trabalha como agente infiltrada contra os vilões, apesar de ser amante de Vandamm e ter que conduzir Thornhill a uma emboscada que poderia matá-lo.
Figura 26: Eve Kendal na cena do restaurante-vagão com Thornhill

Já Madeleine inicialmente é apresentada a Scottie em um exuberante vestido preto e verde, já a remetendo a natureza mórbida da personagem. Nas suas perseguições, Madeleine aparece com um vestido cinza, que incomodou Kim Novak por não combinar nada com o loiro do cabelo (mas a cor significantemente representava a síntese do jogo de preto e branco dos conjuntos que Madeleine irá usar). Quando Scottie salva Madeleine no Golden Gate, ela usava o vestido preto com um casaco de lã branco e uma echarpe de seda branca que voava sobre a cabeça da jovem senhora. O branco do casaco, como 2ª pele remete ao bordão “pele de carneiro sobre a pele de um lobo” (literalmente, já que o casaco era realmente de lã de carneiro) significando a função das cores: o branco como pureza, signo de uma anima evoluído, na terminologia junguiana, e a 1ª pele, o exuberante vestido longo negro, simbolizando o anima perverso (Lilith, femme fatale). A echarpe branca funciona com chamariz sedutor e lubridiador de uma falsa pureza, como um ectoplasma dançando pelo vento como uma espiral de atração. Na seqüência Scottie, já apaixonado por Madeleine, a segue nas ruas de São Francisco, em uma trajetória sem sentido, circulando diversos lugares, como uma aranha tecendo a sua teia, até a porta do apartamento do detetive. É interessante descobrir que Scottie mora em uma daquelas colinas de São Francisco onde se avista um monumento famoso em forma de torre/Falo, símbolo de sua queda e danação. Na porta do apartamento, Madeleine espera por Scottie, com um olhar sedutor e o convida para um passeio. Ela esta usando o mesmo conjunto, casaco branco e vestido negro, com a diferença que a echarpe é negra no lugar de branca, quase como se estivesse revelando sua alma/ectoplasma maléfica.
Figura 27: Madeleine junto com Hitchcock

Figura 28: Cena de Scottie e Madeleine

Descobrimos que as duas personagens se apaixonam pelos protagonistas, mas Judy não recebe o perdão de Scottie e acaba morrendo pela aparição moral-religiosa na torre, e Eve consegue se unir a Thornhill (também esteve na eminência de cair de uma das gigantescas cabeças presidências do Monte Rushmore) com a benção moral/governamental e se salvar.
Voltemos no que se pode chamar de trama de Intriga Internacional, apesar de termos avançados em cenas bem à frente.
É importante salientar que Hitchcock escolhia suas histórias de artigos, notícias policialescas, romances, contos, mas as moldava até extrair o que ele realmente queria, ou seja, uma ambientação, um sentimento, um mood, capaz de expressar as suas obsessões e seu mundo interior. O resultado poderia ser um melodrama gótico como Vertigo, um filme de ação Kafkiano como Intriga Internacional ou um filme de Terror gótico e bizarro como Psicose, mas todos os três são irmanados em um mesmo sentimento, a do mundo através dos olhos de um neurótico genial como Alfred Hitchcock. Um fato curioso é que Cary Grant estava muito insatisfeito com a motivação de seu personagem Roger Thornhill, e as malucas e sem sentido cenas mirabolantes que estava vivendo. Ele pediu explicações a Hitchcock, que ficou satisfeito com o desnorteio de Cary, dizendo que tudo estava funcionando bem. Muitos críticos e teóricos do cinema não compreendiam as tramas de seus filmes, achando-as confusas, inverossímeis e sem sentido algum, não passando de um parque de diversões, bem realizados tecnicamente. De certa maneira Hitch tinha enorme preocupação com o público. Ele dizia que todos deveriam se colocar nos olhos do protagonista, viverem e sofrerem como ele. Procurava esta intimidade empírica através de técnicas e efeitos visuais e sonoros revolucionários. Mas no fundo mesmo Hitchcock queria partilhar seu mundo, suas neuroses, suas fobias, seu medo e suas angústias pessoais com o público, já que ele mesmo era alvo de desdém e bullying desde a infância (por ser gordo e feio) e um poço de neuroses. Desejava que todos sentissem na pele e na alma o que ele passou e sofreu. Não obstante, seguiu sua carreira fazendo praticamente o mesmo tipo de filme até o final de sua longa e produtiva carreira, que o consagrou como um dos maiores diretores do cinema autoral e foi compreendido particularmente por François Truffaut, que dedicou anos de entrevistas e análises profundas sobre sua obra.
Figura 29: Hitchcock e sua enorme popularidade (cena de Alfred Hitchcock Presents)
Novamente evoco o pensamento de Deleuze para elucidar a técnica do mestre: "Na história do cinema Hitchcock aparece como aquele que já não concebe a constituição de um filme em função de dois termos, o realizador e o filme a fazer, mas de três: o realizador, o filme e o público que deve entrar no filme, ou de quem as reações devem fazer parte do filme (é esse o sentido explicito do suspense pois o espectador é o primeiro a "saber" as relações)". É o que Godard faz notar na citada entrevista: "O que é espantoso em Hitchcock é que não nos lembramos da história de Difamação ou do porquê de Janet Leigh ter ido parar ao Bates Motel. Se nos lembramos de Difamação, de que nos lembramos? De garrafas de vinho, não de Ingrid Bergman. Quando nos lembramos de Griffith ou Welles ou Eisenstein ou até de mim não nos lembramos de objetos vulgares. Ele é o único". Nesta montagem, voltemos então a Deleuze : "Hitchcock introduz a imagem mental no cinema, isto é ele faz da relação o objeto de uma imagem que não apenas se junta às imagens-percepção, ação e afeto, mas as enquadra e transforma. Com Hitchcock uma nova espécie de "figuras" aparece, que são figuras do pensamento". A noção de "imagem mental", do cinema de Hitchcock como "coisa mental", fá-lo considerar simultaneamente como uma apoteose do que podemos chamar de "cinema clássico", de "imagem-ação" nos termos de Deleuze, mas também como o seu questionamento, abrindo o caminho de um "cinema moderno": "o que Hitchcock tinha querido evitar, uma crise da imagem tradicional ao cinema, chegaria contudo no seguimento de Hitchcock e das suas inovações". Ele é assim, e como tal deve ser ponderado, um autor-charneira na história do cinema.
O crítico de cinema português fez algumas observações importantes sobre a maravilhosa técnica de Hitchcock:
“Retomemos então a formulação de Chabrol e Rohmer, falando de "um dos maiores inventores formais da história do cinema". Há um "hitchcocknianismo" mais imediato, em que o conceito central, por ele próprio popularizado, é o de "MacGuffin", método por ele desenvolvido desde Os 39 Degraus, que de fato não existem. É "o elemento mecânico" que sobressai num filme e focaliza a atenção do espectador na criação do suspense e no desenrolar da narrativa. Certo, esse é um dado fundamental ao método ou ao sistema formal. Assim, na vasta bibliografia hitchcockiana, que aliás, a net veio aumentar exponencialmente, pode-se atender a uma lista de MacGuffins ao longo da obra do cineasta. Mas introduzamos uma interrogação, qual afloramento de uma suspeita, Vertigo precisamente. Qual é o MacGuffin do mais célebre e consagrado filme de Hitchcock, agora tido mesmo como "o melhor filme de sempre"? Não existe. O que existe, sim, em Vertigo, para além da necrofilia, é a própria vertigem, simultaneamente imagem mental e inovação técnico-formal: o chamado mesmo "efeito-Vertigo" ou dolly zoom, em que ocorrem simultaneamente um movimento de câmara, um travelling, e um movimento óptico na lente, um zoom: é a vertigem de Scottie/James Stewart na perseguição nos telhados, no princípio do filme, e a outra, no final, quando corre pela escadaria da Missão acima, atrás de Judy/Kim Novak. Há um corpus hitchcockiano imediatamente identificável que, depois de Os 39 Degraus, prossegue em filmes como Suspeita, Difamação, de modo capital em A Sombra de Uma Dúvida (o filmes que ele próprio preferia) e O Desconhecido do Norte-Expresso, depois Janela Indiscreta, Os Pássaros, etc. Mas de outro modo pode atentar-se aos longos planos-sequências de Sob o Signo do Capricórnio, a sugestão de "plano único" em A Corda ou a vertigem de Vertigo, exemplos de extraordinárias invenções formais. Atente-se a dois exemplos, Chamada para a Morte e Psicose. O primeiro, como estamos habituados a vê-lo, é um thriller banal, como tantos há nos teatros ingleses e são adaptados ao cinema. Só que é preciso vê-lo nas condições em que foi concebido, com a então inovação do 3D - a mais famosa cena do filme, aquela em que o assassino agarra Grace Kelly enquanto esta atende o telefone, e contudo ela consegue esfaqueá-lo pelas costas, é, vista nesse formato, deveras impressionante: sentimo-nos "dentro" da cena. Quanto à prodigiosa outra cena de esfaqueamento, a do chuveiro em Psicose, com os seus 77 planos rodados ao longo de uma semana e com uma montagem alucinante de 45", essa exige uma reflexão crucial. Na longa entrevista de Truffaut a Hitchcock, aquele faz-lhe a propósito, uma pergunta surpreendente, se considera Psicose "um filme experimental", ao que o mestre aquiesce. Ora, essa categoria, de "experimental", era alheia ao discurso crítico de Truffaut e dos Cahiers, mas é no caso inteiramente justificada.”
Figura 30: Thornhill sendo embriagado.

Após milagrosamente Thornhill ter escapado vivo, ao dirigir bêbado pela estrada à noite, ele é preso em uma cadeia local e de manhã pede a mãe para pagar a fiança e chama seu advogado para defendê-lo de um juiz rancoroso. As cenas na delegacia são bem divertidas nas mãos de um mestre do humor histriônico e nonsense, ou seja, Cary Grant. Muito diferente do julgamento de Scottie em Vertigo, Thornhill não se sente culpado, mas uma vítima e se esforça para ser inocentado da embriaguez, ao levar seu advogado, sua mãe e um oficial de justiça ao local que foi seqüestrado e intimidado. Chegando a mansão, sua versão é desmentida por outros funcionários da casa, dizendo que esta propriedade não era de nenhum Vandamm e sim de um secretário das Nações Unidas. Esta negação deixou Thornhill cada vez mais desconfortável, alimentando recriminações e deboche de sua mãe, que não dava nenhum crédito ao filho. Assim, teve até que suborná-la por alguns dólares para que acompanhasse até ao hotel onde toda confusão começou e que poderia também ser o local que Kaplan, seu duplo, estivesse hospedado.
Como havia comentado, a mãe de Thornhill era interpretada por uma atriz que tinha a mesma idade de Grant (apenas um ano de diferença), tornando muito inverossímil este parentesco. Cary Grant também não entendeu Hitchcock em escalar uma atriz como Jessie Royce Landis para o papel de sua mãe. Como fica claro, Hitch não levava muito a sério a verossimilhança neste filme, que parece mais um sonho. Na verdade Hitch queria significar o mundo de Thornhill como um universo à parte, irresponsável, juvenil, edipiano, divertido e sem culpa. Em muitos momentos Thornhill se comporta como um meninão, usando golpes e artifícios para entrar no quarto de Kaplan, e sempre chamando a atenção da mãe para auxiliá-lo e ter sua aprovação.
Figura 31: Thornhill e sua "jovem" mãe.

No quarto constata que as roupas no guarda roupa de Kaplan serviam nele próprio em tamanho, cintura e altura, confirmando que Kaplan era muito parecido fisicamente. O engraçado é que ninguém nunca o tinha visto, mesmo a camareira do hotel passa a tratar Grant como se fosse Kaplan, visto que era a primeira vez que tinha encontrado alguém no quarto. Mais tarde, como havia comentado, Hitchcok esclarece para o público sobre a fantasmagoria de Kaplan. Tornhill deixa o quarto de hotel com a sua mãe e se dirigi ao elevador, seguido pelos dois brutamontes que trabalham para Vandamm.
Figura 32: A divertida cena do elevador.

A cena no interior do elevador é uma das mais divertidas do filme. Thornhill aponta para os dois gangsters e fala baixinho para a sua mãe que eles queriam tirar sua vida. Inesperadamente a Sra. Thornhill pergunta a queima roupa aos dois suspeitos se eles estariam ali para matar seu filho. Os dois bandidos começam a rir, assim como sua mãe e todos os ocupantes do elevador, exceto Roger, humilhado como uma criança pequena. Esta cena em particular lembra uma das brincadeiras divertidas de Hitchcock, a de ficar nos fundos de um elevador lotado, e proferir com sua voz lenta, grave e gutural, como se estivesse conversando com outra pessoa, que desejava matar em breve uma pessoa. O silêncio imperava netas pegadinhas, que logo em seguida era desabado por gargalhadas, quando descobriram quem era o dono daquela voz.
Figura 33: Hitchcock em Alfred Hitchcock Presents.

Intriga Internacional é um dos filmes mais eletrizantes de Hitchcock, com estilo ágil e vertiginoso, lembrando seus filmes ingleses como A dama Oculta, Os 39 Degraus, O Homem que sabia Demais, O Agente Secreto. Já os da fase americana, eram mais sombrios, devido ao período de guerra e pós-guerra que consolidou o gênero Noir como o maior movimento cinematográfico norte-americano dos anos 40 a 50, tendo Hitchcock inserido neste meio por reais sentimentos de identificação, tanto estético (influência expressionista) quanto pelos temas (angústia, culpa, medo, obsessões). Apenas Sabotador (1942) possui um pouco da vertiginosa e onírica semelhança com Intriga Internacional, mas fica claro que esta obra-prima (North by Northwest) supera todos os filmes de ação ligeira e suspense realizado por Hitch ou qualquer outro realizador na história do cinema, até nos dias de hoje.
Continuando a trama, Thornhill escapa de seus algozes, em uma de suas artimanhas saindo do elevador e despede às pressas de sua mãe. Ele agora teria que se aventurar sozinho em uma etapa de crescimento e maturidade e vai até ao prédio da ONU para conversar com o verdadeiro dono da mansão. Como já havia comentado, ele é incriminado e temos a famosa cena do plongée e fuga.
Figura 34: Thornhill em fuga na Estação de Trem.

Figura 35: Foto que incrimina Thornhill.

Vai até a estação, mas como já estava sendo vigiado, com fotos suas nos balcões dos guichês com a faca na mão e o corpo do secretário caído aos seus pés, tenta então entrar como clandestino em um dos trens. Lá conhece uma linda jovem, Eve (Eva Marie Saint) que praticamente o seduz, em uma das cenas mais sensuais, com os diálogos mais cheios de malícia e duplo-significados da história do cinema, rivalizados apenas com a famosa cena do piquenique de “Ladrão de Casaca” (1955) entre Cary Grant e Grace Kelly. O roteiro e diálogos de Intriga Internacional é um verdadeiro triunfo, escrito por um verdadeiro mestre, Ernest Lehman, roteirista de diversas obras primas, como Amor Sublime Amor (1961), A Embriaguez do Sucesso (1957), A Noviça Rebelde (1965) e Quem Tem Medo de Virgínia Wolf (1967).
Em seguida temos a cena do quarto-vagão, uma cena noturna, que Hitch procurou iluminar com poucas luzes e com uma câmera portátil. Apesar de Hitch filmar 95% em estúdio, ele procurou montá-la em um clima mais íntimo possível, com muitos closes e poucos cortes, como se uma equipe de filmagens estivesse realmente dentro do quarto, empilhados como num filme dos irmãos Marx. O resultado é para mim a cena mais erótica que já assisti, juntamente com do relato de Bibi Anderson a Liv Ulman em Persona (1965) de Bergman. Lembro que assisti este filme, pela primeira vez, quando tinha uns nove anos, na TV. Na época era preto e branco, e mesmo com a minha pouca idade senti pela primeira vez uma sensação não apenas erótica mas romântica também, como eu jamais tinha vivenciado. Eva Marie Saint, que nunca chamou atenção por sua beleza ou glamour nos seus filmes anteriores neste esta arrasando, em tudo. Seu olhar, a maquiagem perfeita, seu penteado, seu gestual, sua voz a transformam em uma deusa da beleza hipnotizando cada poro, cada pelo e testosterona de qualquer homem que assistiu esta cena, completamente luxuriante. Seu vestido branco, sem a 2ª pele falsa, o casaco preto, revela seu verdadeiro ser e de como realmente esta apaixonada por Thornhill. Nesta cena não há vestígios de dúvida, esta nua em seus sentimentos por Thornhill,assim como reverbera a paixão nos abraços e beijos deste casal. Hitchcock fez também algo muito semelhante em Notorius (1946), na famosa cena dos beijos e abraços entre Ingrid Bergman e Cary Grant. Nela Hitch enganou o código de censura de Hollywood da época ao fragmentar a cena em vários pequenos beijos, sendo feita sem nenhum corte, num plano único.
Figura 36: cena do quarto-vagão.

Hitchcock criava filmes como Vertigo, Notorius e Intriga Internacional para inserir cenas incríveis que imergiam o público para dentro de um sonho, de um território de pura emoção e segredos íntimos. O artigo de Juan Pablo Carrillo Hernández: Edipo, deseo y emcuentro com El otroen "North by northwest", dá uma luz de como e porque Hitchcok se interessava por este mood, esta ambientação:
“Slavoj Zizek, no entanto, ensinou que, especialmente nos filmes de Hitchcock, há mais do que mera anedota. Zizek descobriu nos filmes ingleses uma sutil exposição da psique humana, como se Hitchcock tivesse intuitivamente chegado a conceituações às quais Jacques Lacan chegou por dedução - dois detetives perdidos em cena do crime da mente humana, cada um armado com seu próprio método. No caso North by Northwest, um dos temas psicanalíticos mais interessantes encontrados no filme é precisamente o que se refere ao seu motivo central, que poderíamos reconsiderar a partir da sequência em que Thornhill (Cary Grant) até a mansão Lester Townsend, para compará-la com o processo de formação de identidade em que o exterior, o próprio mundo, se esforça para dizer ao sujeito quem ele é, dita sua identidade, embora em paralelo no o próprio sujeito persiste um certo grau de resistência a essa imposição. Todo mundo diz a Thornhill que ele é o espião George Kaplan e a identidade é tão ambígua, a estrutura, paradoxalmente, tão rigorosamente flexível (também no mundo real) que, não importa quem ele seja, Thornhill não consegue se livrar das tentativas de que os outros o considerem como Kaplan. Até que ele finalmente ceda, em grande parte porque ele não tem escolha, porque as circunstâncias o prejudicam, porque tudo parece indicar que ele é Kaplan - tudo, exceto ele próprio.
A farsa da identidade começa a romper com o encontro entre Thornhill e Eve Kendall (Eva Marie Saint). A bordo do trem que levará o publicitário a um novo local onde a identidade de Kaplan o espera, Eve se apaixona por ele e tece uma reunião na qual, talvez sem aviso prévio, Thornhill se vê livre da obrigação de ser Kaplan. De fato, essas cenas são uma primeira mudança ao seu constante desejo de justificar aos outros que ele não é Kaplan. Com Kendall, Thornhill pode não apenas dizer seu nome verdadeiro, mas até verbalizar suas verdadeiras intenções: levá-la para a cama. E que terreno mais indiscutível da identidade do que o desejo sexual pelo outro? Também vale ressaltar que, desde a sua subida ao trem, a importância de sua mãe,muito presente na primeira parte do filme, se dilui até desaparecer completamente, ofuscada por Eve. De fato, em relação à presença da mãe, no Norte pelo Noroeste há uma cena quase espelhada na de Strangers on a Train, também de Hitchcock (1951): nesta, Bruno Anthony (Robert Walker) conhece o tenista Guy Haines (Farley Granger) também no vagão-restaurante de um trem; ao falar, Guy ressalta o laço peculiar de Bruno, ao qual ele confessa que o usa porque sua mãe o tricotou, o que o envergonha um pouco, mas aparentemente não é o suficiente para não usa-lo, ou seja, ele percebe a relevância que sua mãe tem em sua vida (e talvez, mais do que relevante, se possa falar em dominação); Em North by Northwest, há um momento na reunião no vagão-restaurante, onde Thornhill parece estar prestes a fazer algo muito semelhante: quando ele acende o cigarro de Eve com fósforos marcados com suas iniciais "ROT". Ali ela o pergunta o que significa o “O”, e ele responde com uma evasiva (e o espectador possivelmente suspeita que a inicial tenha algum relacionamento com a mãe); essa negação (em parte por causa de Pacto Sinistro) poderia ser tomada como um distanciamento, não da "figura materna", como é dito às vezes, mas do desejo da mãe, que não é de forma alguma o desejo de si mesmo, o desejo de Thornhill neste caso.
E esse é, na minha opinião, o ponto nodal do mal-entendido, ou seja, o ponto em que pergunta e resposta, problema e solução se juntam. Thornhill não é Kaplan. "Eu não sou quem você diz que sou" poderia ser a tese que está tão ansiosa para provar, pelo menos na primeira parte do filme. No entanto, com a irrupção de Eva, tudo muda (a “Eva” aquela do Paraíso, onde apenas um momento antes de tudo não tinha nome?). Ou talvez, seja melhor dizer que a mudança ocorre graças à queda de ambos e de sua comunhão sexual. Por um tempo, para ela, Thornhill parece disposto a assumir a identidade de Kaplan e fazer o que um espião faria. Só que não é exatamente isso, e essa é a armadilha do filme. Thornhill parece assumir a identidade do espião, mas o que realmente acontece, do ponto de vista psicanalítico, é que ele assume sua própria identidade como sujeito desejoso. Para a psicanálise lacaniana - na linguagem de paradoxos e aparentes despedimentos - seu desejo (por Eva) o leva a supor que ele quer algo e alguém, e assim o coloca em um momento de sua vida subjetiva até então desconhecida: a do início da construção do seu próprio eu, através da realização do seu desejo.
Agora apaixonado por Eve, Thornhill segue com ela até Chicago para um hotel. Eve diz que tem uma pessoa que iria ajudá-lo e marcou um encontro em um ponto de uma estrada no meio do dia e do nada, em plena luz do sol.
Figura 37: Cena que antecipa o ataque aéreo.

A cena da perseguição do avião a Cary Grant é uma das mais marcantes da história do cinema. Dura em torno de 7 minutos e poderia até ser apresentada como um curta metragem pela sua duração, construção, ambientação e técnica cinematográfica. O ponto de vista do alto, como se fosse um olhar de Deus, já tinha sido usado na sequência em que Scottie sai derrotado, culpado e amargurado depois do Júri que considerou real o suicídio de Madeleine. O ponto de vista é do alto, acima de uma torre, em que vemos a silhueta pequena de James Stewart cabisbaixo e moroso saindo do local do julgamento. Outra cena similar e a do alto do edifício da ONU, que já foi comentada, e a sequência do segundo grande ataque dos pássaros, em Birds(1963). Todas elas remetem a um olhar, que possivelmente se associaria a de um Deus rancoroso e cruel, como o Deus que pediu a Abraão o sacrifício de seu próprio filho e torturou Jó de maneira sádica e cruel. Thornhill seria um Jó moderno, que comungava com a fé no capitalismo. Bem sucedido, rico e poderoso disseminava o consumo e o estilo de vida do American Way of Life, como executivo de uma grande empresa de marketing, mas que perdeu tudo e vive em fuga por um crime que não cometeu,perseguido por criminosos poderosos. Esta cena que é um misto de metáfora Kafkiana, que difere na ambientação, já que á luz do sol e o horizonte dominam nesta clássica Pièce de résistance hitchcockiana, e nas páginas de O Castelo e O Processo, seus personagens sofrem perseguições em lugares labirínticos e expressionistas.A metáfora religiosa de punição e expiação judaico-cristã também esta embutido nas imagens que culminam em explosões e fogo como danações do Inferno de Dante. A mesma ideia de “homem contra a máquina”, “Deus contra o homem”,também foi usada, com a mesma força e maestria, pelo genial Joseph Losey em “Limiar da Liberdade” (1970), filme em que dois fugitivos misteriosos tentam se salvar e escapar de um helicóptero que os persegue pelas montanhas e desertos. As locações na Espanha foram bem significativas, compondo um ambiente árido próximo ao de Intriga Internacional, que também faz lembrar cenários bíblicos da região da Palestina e Israel, algo mítico e épico.Limiar da Liberdade é um filme enigmático, quase abstrato, com diversas alusões políticas e a eterna luta de classes. Também no filme “O Encurralado” (1971) de Spielberg sugere a mesma temática e ambientação, a de um homem cansado, casamento em crise, trabalho incerto e pouco compensador, que se vê atormentado por um ser de óleo e metal com rodas, um Leviatã que julgará o homem comum que desperdiçou sua vida e perdeu sua essência. Será que a vida vazia e superficial de Roger Thornhill esta em julgamento e a culminância é a luta por resinificar sua existência, através de uma batalha, como Jacó e o anjo, o materialismo e existencialismo? Thornhill dizia que ele, assim como o Market, não mente, apenas exagera. Mas este exagero, este vazio, cheio de ar o condenou a vagar como um balão errante, à deriva, de norte ao nordeste. Como já dizia Nietzsche sobre o eterno retorno, é melhor buscar significado na vida, mesmo no desespero, sabendo que tudo não vai dar em nada e tudo volta a estaca zero.
Figura 38: Thornhill sendo caçado. Uma das mais icônicas cenas de Hitchcock.

Um dos aspectos mais importantes desta cena é o uso do som. Hitchcock tinha a colaboração do maior compositor da indústria cinematográfica que era Bernard Herrmann, que já estava fazendo seu quinto filme com o autor de Vertigo. Mas Hitchcok sacralizava as cenas de assassinato com a maior absoluta falta de música. Para ele a música seria uma distração e um exagero, num momento cinematográfico de pura tensão. Apenas na famosa sequencia do chuveiro em Psicose, Hitchcock quebrou sua convenção. Nesta cena que dura cerca de 8 a 9 minutos Hitchcock usou apenas os sons diegéticos e até mesmo aborrecidos, de uma estrada no meio do nada, isto em quase 5 minutos de tédio e poeira, para explodir no barulhento e apocalíptico som do bimotor avião que passa a perseguir Thornhill na estrada e no milharal. A Música de Herrmann só aparece arrebatadora, com trompas, cordas e percussão, após a colisão entre o avião e um caminhão que quase atropela Thornhill. Martin Scorsese comentou uma vez que gostava de assistir os filmes Hitchcock sem som, pois achava a montagem e os planos de Hitchcock extremamente musicais e cadenciados. Não que Scorsese minimizava a música nos filmes de Hitch, principalmente a de Herrmann, que alias usou o compositor de Psicose em dois de seus filmes: Taxi Driver(1976), última trilha de Bernie e Cabo do Medo (1991) trilha adaptada de Herrmann por Elmer Bernstein da primeira versão do filme.
Figura 39: Partitura de Herrmann para a música de abertura.

A trilha de Herrmann para Intriga Internacional é essencial para o sucesso artístico do filme. Para Willian Friedkin, diretor de O Exorcista (1973), a música de North by Northwest é fundamental. Disse que o filme não existira sem a música. O tema e a abertura baseados na repetição de motifs e na sessão de percussão (tímpanos e pratos) e metais (Trompas) reforçam a montagem vertiginosa e itinerária do filme. Já o tema de amor, um andante affettuoso, com a base de violinos e sopros (oboé, clarineta e flautas), evoca uma sensação de intimidade e prazerosa no aconchegante e apertado quarto-vagão, como se Tornhill voltasse para o ventre da mãe.
Figura 40: Imagem da trilha sonora em LP.

Depois desta cena épica, que poderia ser a cena final clímax de qualquer bom filme de ação, Thornhill escapa mais uma vez da morte e, agora com o enorme desafeto de ter sido traído pela primeira e verdadeira paixão de sua vida, vai até ao hotel Ambasador e reencontra Eve. Usando um vestido vermelho, acetinado com motivo floral, este contrastava com sua expressão fria e dissimulada, escondendo sua felicidade por Thornhill ter voltado com vida. Ela finalmente não se contem e o abraça, mas Thornhill não retribui o abraço, demonstrando sua incredibilidade. O jogo de aparências entre os dois, dissimulando seus desejos, reforça o sentimento de desilusão e cinismo, que em sua queda é forçado a ter que caminhar sozinho em sua jornada de auto-conhecimento e busca de identidade. Sua transferência edipiana para Eve agora é puro disfarce e jogo de sobrevivência e ele finge que vai tomar banho, assoviando a música “Sing in the Rain”, enquanto espera por Eve sair e identificar o local que imagina ser entre ela e Vandann. Usando um artifício de rabiscar a última folha de bloco de anotações perto do telefone, ele identifica o local do encontro.
Antes desta cena quero comentar que Hitchcock rejeitou os desenhos figurinos que os produtores da Metro ofereceram para a vestirem Eva Marie Saint. Hitchcock levou Eva em uma das mais caras lojas de roupa e artigos femininos de New York e a transformou em uma personagem extremamente glamorosa. Ficou tão linda, elegante e sofisticada que Cary Grant a sugeriu que fizesse apenas papéis glamorosos. Mas Eva, formada na Actors Studios, com uma recente carreira voltada para papéis mais desafiadores e com temática adulta, respondeu a Cary que estava adorando o papel e de estar trabalhando com ele e Hitch, mas preferia seguir uma carreira mais diversificada. A intenção de Hitchcock assumir a função de figurinista neste filme não era inédita em sua carreira. Ele gostava de moldar suas atrizes dentro da sua visão fetichista de loira vulcânica, fria por fora, mas um vulcão na cama. Também tinha uma enorme preocupação com a cor, segundo o tema e profundidade psicológica dos personagens, como descrevi sobre o vestido de Eve e Madeleine. O vestido sensual de cor vermelha de Eve, tanto pode significar perigo para Thornhill, por estar apaixonado por uma amante de um criminoso que quer tirar sua vida, quanto pode revelar a paixão dela pelo herói desafortunado.
Figura 41: Vestido vermelho de Eve Kendal.

A cena seguinte, passado em um salão de leilões de peças de arte, é uma das mais divertidas e subversivas seqüências do filme. Hitchcock, que sofrera nas mãos dos padres em sua educação jesuíta, do colegial à Universidade de Santo Inácio (chegou a comentar sobre as humilhações e até torturas que viveu neste período), tinha sempre o hábito de anarquizar os ambientes regidos por rituais, não somente igrejas, mas salões da alta burguesia e, como neste filme, nas casas de leilões de objetos de Arte. Temos também nesta seqüência a presença do Macguffin. Para Hitchcock, MacGuffin (às vezes McGuffin ou Maguffin) é um dispositivo do enredo, na forma de algum objetivo, objeto desejado, ou outro motivador que o protagonista persegue, muitas vezes com pouca ou nenhuma explicação narrativa. A especificidade de um MacGuffin, normalmente, é sem importância para a trama geral. Em Intriga Internacional o Macguffin é uma pequena estatueta de um ídolo religioso oriental que estava sendo leiloado nesta cena. Dentro da estatueta se escondia o verdadeiro objeto de desejo, tanto dos bandidos como o da agência Governamental, um microfilme contendo revelações, sabe lá de que, já que Hitchcock não dá a mínima importância na trama. Cary Grant dá um verdadeiro show de humor durante o leilão, anarquizando os lance de venda, transformando no calmo, elegante e o ritualístico protocolo de um leilão em um verdadeiro Circo Mambembe.
Figura 42: O macguffin de Intriga Internacional.

Figura 43: Barraco de Thornhill na casa de Leilão de Arte.

Para tentar se defender de uma nova ameaça de ser sequestrado pelos capangas de Vandamm, Thornhill baixa o barraco dando socos em alguns seguranças e é preso por policiais. Acreditando que estava sendo levado para a delegacia ele é transportado até ao Aeroporto de Chicago para encontrar o Chefe da Inteligência, que faz todas as revelações sobre Kaplan, Vandamm e Eve, que na verdade era uma de suas agentes infiltradas. Já que Hithcock já tinha revelado para o público bem antes, a explanação a Thornhill foi toda abafada pelo som de um Boeing que estavam decolando, evitando talvez 5 minutos de explicação chata e repetitiva. Este recurso foi usado em diversos filmes por Hitchcock, que dizia: “o Drama e a vida sem as partes chatas”.
Figura 44: Thornill na cena do Aeroporto.

Figura 45: Thornhill em frente ao Monumento

Thornhill, agora motivado a salvar Eve, que inspirava desconfiança em Leonard, secretário de Vandamm, vai até ao Monte Rushmore para o confronto e o epílogo final. O governo não permitiu que seus atores e dubles sapateassem nas cabeças gigantes dos ex-presidentes. Hitch chegou até alegar que seu filme era patriótico e contra agentes estrangeiros, mas ficou vedado de filmar, assim como na verdadeira sede da ONU, que teve que reproduzir nos estúdios. Para solucionar o problema (a sequência do Monte Rushmore era a pedra angular do roteiro que teve origem, quando Hitch falou sobre esta ideia a Lehman) ele teve que construir todo um cenário, em escala real, no maior estúdio da Metro, algo realmente gigantesco. Hitchcock era realmente politicamente conservador e de direita, mas seu cinema era o oposto de suas convicções ideológicas, e o governo dos EUA é tratado semiologicamente como um Deus cruel que provoca a danação de Thornhill e, nada mais saudável, que o aspecto delirante do id deste personagem sapateasse na cabeça destes deuses, como quase vingança de um super-ego destrutivo e cruel(o governo). Segue a famosa cena que Thornhill salva Eve de cair do monumento (muito diferente de Vertigo em que Judy cai da Torre) e o filme termina com um das mais geniais cenas de alusão sexual, a do trem entrando no túnel. Finalmente um final feliz para o protagonista, que depois da queda, expiação, resgate de identidade e amadurecimento é agora capaz de assumir uma vida adulta ao lado de uma companheira que realmente ama.
Figura 46: Famosa cena no Monte Rushmore.

Apesar de muitas semelhanças que Intriga Internacional tem com Vertigo, no sentido psicanalítico, existencial e semiológico, os dois filmes são muito diferentes no ritmo e no estilo. Vertigo é um filme noir-expressionista, amargo, já Intriga Internacional é um moto-contínuo surrealista e muito divertido. Mas nem os críticos, muito menos o público poderia esperar pelo novo filme do mestre do Suspense. Um filme com vários paralelos entre os dois anteriores, com elementos de necrofilia, voyeurismo, fobias, perversão e complexo de Édipo, mas numa dimensão nunca antes explorada e encenada como nesta descida ao Inferno da alma americana: Psicose.
Psicose (1960)
“A morte de uma mulher bonita é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo”.
Edgar Allan Poe

Robert Bloch, autor de Psicose, se inspirou na apavorante história de um humilde fazendeiro de Wisconsin, Ed Gein, que foi preso no final de 1957, responsável por vários assassinatos de mulheres vizinhas de sua fazenda. Quando questionado, Gein disse aos investigadores que, entre 1947 e 1952, ele fez pelo menos 40 visitas noturnas a três cemitérios para exumar corpos enterrados recentemente enquanto estava em um estado "confuso". Em cerca de 30 dessas visitas, ele disse que saiu da confusão enquanto estava no cemitério, deixou a sepultura em bom estado e retornou para casa de mãos vazias. Nas outras ocasiões, ele cavou as sepulturas de mulheres de meia idade recentemente enterradas que ele achou que pareciam com a sua mãe e levou os corpos para casa, onde ele usava a pele delas para fazer a sua parafernália.
Na manhã de 16 de novembro de 1957, a dona da loja de hardward de Plainfield, Bernice Worden, desapareceu. Um residente de Plainfield relatou que o caminhão da loja havia sido retirado da parte traseira do edifício por volta das 9h30 da manhã. A loja ficou fechada durante o dia todo; alguns residentes locais acreditavam que era pela temporada de caça de cervos. O filho de Bernice Worden, o delegado xerife Frank Worden, entrou na loja em torno de 17h e encontrou a caixa registradora aberta e manchas de sangue no chão. Frank Worden disse aos investigadores que Ed Gein esteve na loja na noite anterior ao desaparecimento da sua mãe e que ele retornaria na manhã seguinte para um galão de anticongelante. Um recibo de vendas para um galão de anticongelante foi o último recibo escrito por Worden na manhã em que ela desapareceu. Na noite do mesmo dia, Gein foi preso em uma mercearia no oeste de Plainfield, e o Departamento de Xerife de Waushara County fez buscas na fazenda de Gein. Um delegado descobriu o corpo decapitado de Worden em um galpão (armazém) na propriedade de Gein, pendurada de cabeça para baixo pelas pernas com uma barra em seus tornozelos e cordas nos pulsos. O tronco estava "vestido como um cervo". Ela foi baleada com um rifle calibre 22 e mutilações foram feitas após a sua morte. Nas buscas pela casa, as autoridades encontraram: Ossos humanos inteiros e fragmentos. Uma lixeira feita de pele humana. Pele humana cobrindo vários assentos de cadeiras. Crânios na sua cabeceira de cama. Crânios femininos, alguns com o topo serrado. Tigelas feitas de crânios humanos. Uma cinta feita de um tronco feminino destroçado dos ombros à cintura. Calças feitas de pele de perna humana. Máscaras feitas da pele de cabeças femininas. Uma máscara do rosto de Mary Hogan em uma bolsa de papel. O crânio de Mary Hogan em uma caixa. A cabeça inteira de Bernice Worden em um saco de pano. O coração de Bernice Worden em uma "bolsa de plástico em frente a um fogão de Gein". Nove vulvas em uma caixa de sapatos. O vestido de uma menina e "a vulva de duas mulheres de aparentemente 15 anos de idade". Um cinto feito de mamilos humanos femininos; Quatro narizes; Um par de lábios em um cordão de cortina na janela; Um abajur feito da pele de uma face humana; Unhas de dedos de mulheres.

Figura 47: Objetos da casa de Ed Gein manufaturados com pele e ossos das vítimas.
A revelação sobre este monstro em pleno século XX horrorizou não só o país como o mundo inteiro. Finalmente Hollywood não teria mais necessidade de importar histórias de mortos-vivos que sugam sangue de suas vítimas em castelo medievais. Não precisaria adaptar mais Drácula, Múmias, Frankenstein, Lobisomens, etc. Os produtores da Universal agora teriam um novo e mais terrível monstro, mais sanguinário, doentio e apavorante. Sua fazenda poderia rivalizar-se, em escala menor, com os campos e concentração de Auschwitz. Não seriam mais necessárias maquiagens mirabolantes. O monstro seria baixo, gordo, tímido e pouco inteligente. Made in USA. Agora os estadunidenses possuem Ed Gein, o Rei dos Monstros.
Figura 48: Ed Gein (no centro)

Ed Gein seria o primeiro de uma galeria de psicopatas, que mais tarde foram identificados como serial killers. O termo foi cunhado durante um Projeto do FBI, em 1977, nos primeiros dias da psicologia e do perfil criminal.Os agentes do FBI John E. Douglas,Robert K. Ressler e a psicóloga Dra. Ann Wolbert Burgess, entrevistaram assassinos em série que estavam presos, com o intuito de entender como esses criminosos pensam e aplicam esse conhecimento para resolver os casos em curso. Douglas, que também era agente a Unidade de Ciência Comportamental do FBI, viajou pelos Estados Unidos para conversar com assassinos em séries e traçar o perfil psicológico deles. O agente foi a inspiração para a elaboração do personagem Jack Crawford de "O Silêncio dos Inocentes" e Will Graham da série "Hannibal", assim com na série “Mindhunters” (Netflix). A Dra. Ann Wolbert Burgess, também fazia parte da UCC. Em 1988, ela publicou, ao lado de Ressler e Douglas, o livro "Sexual Homicide: Patterns and Motives", estudo inédito sobre os assassinos em série. Ela dá aulas na Boston College, e se tornou referência no tratamento de vítimas de trauma e abuso. Os psicopatas entrevistados ficaram célebres pelos seus horrendos crimes e perversões. São Ed Kemper, um gigante de mais de dois metros de altura que matou mais de dez pessoas, inclusive sua mãe (fazia sexo com os cadáveres de suas vítimas além de comê-los); Charles Manson (líder carismático de uma seita de jovens hippies, principalmente mulheres, que manipulava e prostituía, ficou famoso por uma série de assassinatos, o mais conhecido foi a da atriz Sharon Tate (estava grávida de 8 meses); Dennis Rader, conhecido como o assassino BTL (Blind,Torture, Kill) e matou 10 pessoas entre 1974 a 1991; Jerry Brudos, o assassino da luxúria, que mantinha pedaços dos corpos de suas vítimas como troféus.Theodore Robert Bundy, mais conhecido pela alcunha de "Ted Bundy" foi um notório assassino em série americano que sequestrou, estuprou e matou várias mulheres jovens na década de 1970. Era bonito e articulado e chegou a se defender como advogado em seu julgamento. O perfil destes serial killers tinham muitos pontos em comum. Quando jovens eram garotos anti-sociais e já exercitavam o sadismo ao torturar, matar e conservar pequenos animais (Taxidermia). Na vida adulta começam a matar pessoas, homens ou mulheres, que tinham fixação sexual. Na maioria eram necrófilos e canibais, como alguns que citei acima. Esta compulsão criminosa e doentia era insaciável. Muitos relataram que estavam aprisionados a dores de cabeça insuportáveis e de uma tremenda ansiedade e depressão que só eram aliviadas ao satisfazerem suas fantasias de horror e sangue.
Figura 49: Imagens de conhecidos serial killers.

Quando Intriga Internacional foi lançado nos cinemas Hitchcock foi celebrado pelos críticos como se estivesse no auge de sua carreira. O sucesso comercial de Intriga foi estrondoso e além de receber críticas elogiosas teve algumas indicações ao Oscar de 1959. Seu trabalho como diretor e produtor de cinema e TV estavam deslanchando.Sua figura rechonchuda era muito conhecida pelo mundo, principalmente pelas suas participações, mórbidas e engraçadas,na abertura do programa de TV “Alfred Hitchcock Presents” que ficou no “ar” durante 11 anos (1955-1965).
Na saída da premier de North by Northwest um jornalista perguntou se Hitchcock iria aproveitar o sucesso deste seu último filme para aposentar na crista da onda, já que estava rico e tinha completado 60 anos (Hitch nasceu em 13 de agosto de 1899). Esta pergunta soou como uma sentença de morte. Será que o público, produtores e críticos acham que deveria realmente aposentar-se. Esta imagem de que estaria velho demais para as novas tendências e o púbico jovem assombrou Hitchcock por alguns dias,deixando-o ansioso para começar um novo projeto, que fosse moderno, ousado, original e calaria a boca dos jornalistas que já o tratavam como coisa do passado.
Estava aproveitando as férias com a Alma, sua esposa, quando vislumbrou, em numa banca de revistas do Aeroporto, o que seria o seu novo filme, o romance Psycho de Robert Bloch.

Figura 50: Hitchcock lendo o romance que inspirou seu novo filme. Hitchcock além de grande diretor também foi um grande marqueteiro e sabia instigar o interesse do público em seus novos projetos.
Psicose, o livro de Bloch, que foi publicado originalmente em 1959, era uma oportunista maneira do autor em aproveitar a publicidade horripilante do assassino de Wisconsin, Ed Gein, um psicopata solitário que vivia em uma localidade rural isolada, que tinha uma mãe dominadora e construiu um santuário para ela em um quarto,além de se vestir com roupas femininas. O livro recebeu péssimas resenhas críticas, mas não afetou nas vendas.
Hitchcock também não gostou do livro, mas interessou-se pela cena do chuveiro e da possibilidade de criar um plot twist a partir desta cena, criando uma obra que poderia levar seu público as mais mórbidas raias imersões dentro de um inconsciente doentio.
Hitch sempre achou o público estadunidense ingênuo, superficial e de um otimismo que beirava ao infantil. Seu projeto inicial em Hollywood, Rebecca (1940) era a prova de como o mestre do suspense gostava de subverter este universo infantil, que remetia aos contos de fadas. Outros filmes como Correspondente Estrangeiro(1940) (filme sombrio, encenado no período da 2ª guerra na Europa), Suspeita (1941), Sabotador (1942), Um Barco e Nove Destinos (1944) e principalmente a Sombra de Uma Dúvida (1943), são obras que Hitch queria alertar ao ingênuo público dos EUA sobre o mal que estava acontecendo no mundo. “Sombra de Uma Dúvida”, que insere um psicopata, o Tio Charlie (Joseph Cotten), no seio de uma típica família pueril e alienada de uma bucólica pequena cidade do interior é um exemplo de como Hitchcock gostava de torturar seu público com uma realidade dura e violenta,muito diferente dos filmes da MGM, das revistas femininas, e o dia-a-dia do estadunidense médio que ignorava a verdadeira e sórdida realidade. Em uma determinada sequência de A Sombra de Uma Dúvida, Joseph Cotten revela a sua jovem sobrinha (Teresa Wright) sobre como o mundo realmente é, sujo, mesquinho e cruel. O Tio Charlie (Cotten), um serial killer sedutor e frio, tem parentesco direto com outros vilões de sua cinematografia: o Dr. Murchison de Quando Fala o Coração (1945), Fry de Sabotador (1942), Norman Bates de Psicose (1960) e Robert Rusk de Frenesi (1972).
Figura 51: Cena "A Sombra de Uma Dúvida". Tio Charlie fala como o Mundo realmente é.

Em Veludo Azul (1986) de David Lynch, temos um paralelo com A Sombra de Uma Dúvida.O diretor de Twin Peaks, abre o filme com a música melosa Blue Velvet, de Gene Vicente, mostrando imagens idílicas de uma pequena cidadezinha, com cachorrinhos brincando, crianças com cabelos loiros e cacheados brincando, Um carro de bombeiros passando lentamente e um de seus tripulantes acenando amistosamente para os transeuntes,além de cercas brancas com rosas vermelhas emoldurados com um sólido céu azul. Esta bucólica cena, beirando a um cartão-postal kitsch se prolonga até a uma casa onde um Sr. de meia-idade, que esta regando o seu jardim.Elesofre um ataque cardíaco, e Lynch, ao invés de conduzir para outra cena, a de parentes o socorrendo, transporta a sua câmera para outra dimensão, ao subterrâneo do jardim, ocupado por insetos monstruosos, que se tornam gigantes através do zoon. Este confronto com a realidade, revelando uma outra, mais terrível e amarga, era o objetivo de Hitch e Lynch em romper com a visão adocicada e falsa dos estadunidenses de como rege verdadeiramente o mundo.O kitsch que encobre a realidade com pássaros mecânicos de Blue Velvet, e os canarinhos (lovebirds) de Os Pássaros, ambos simbolizando o amor idílico, são descortinados e assombrados por um mundo escatológico e insano, como os besouros que se digladiam no subterrâneo. O mundo de aparências dos filmes de Hitch e Lynch está sempre se confrontando.

Figura 52: O Mundo Idílico de Veludo Azul.
Ainda em Veludo Azul, o personagem de Jeffrey Beaumont (KyleMacLachlan) esta dividido entre dois mundos, a namorada romântica e pura Sandy Willians (Laura Dern) e a amante, a cantora Dorothy Vallens (Isabella Rossellini).Também esta polarizada entre seu pai, internado em um hospital, entubado com mascara de oxigênio, e do vilão e psicopata Frank Booth (Denis Hooper), que também usa uma máscara com gás, quando esta humilhando e violentando Dorothy (em uma das sequências mais fortes do filme). Jeffrey assiste este ritual de fantasia sexual pervertido entre Booth e Dorothy, pela fresta da porta de um closet, tal qual um menino assistindo os pais pelo buraco da fechadura.

Figura 53: Veludo Azul: Frank e Dorothy.
Assim como Hitch, Lynch deflagra o mundo idílico e hipócrita,que falseia a realidade para um universo proibido de fantasias sexuais, fetiches, incesto e violência. Os dois diretores impigem seus públicos com revelações sombrias, conduzidos por personagens-guias que transitam nestes dois mundos, transformando o público em voyeurs, incestuosos e pervertidos. A personagem Dorothy, que remete ao Mágico de Oz, citado não só em Veludo Azul, mas em Coração Selvagem (1990), é também um personagem-guia. Não fica bem claro se a fantasia sexual e violenta que Jeffrey assiste é para satisfazer Booth ou Dorotthy. Quando ela descobre a figura clandestina em seu closet, e o obriga a repetir o mesmo ritual de perversão. Lynch cria um misterioso pesadelo no inconsciente de Jeffrey, com sons guturais do subterrâneo dos besouros, luzes bruxuleantes, e raccords de câmera, oníricos e bruscos, como o imenso close da sensual boca de Dorothy sendo esbofeteada. Jeffrey agora é prisioneiro deste mundo de perversões que magneticamente é atraído e não tem como escapar e de ter que seguir adiante.

Figura 54: Jeffrey espionando Frank e Dorothy.
Na sequência em que Jeffrey observa na fresta do closet, ele fica fascinado, mas também sente repulsa pelo ritualístico estupro, como se transferisse a potência fálica castrada de seu pai enfartado para a potência violenta fálica de Frank, reiterando talvez o trauma de assistir (pelo buraco da fechadura) os pais fazendo sexo. Estas figuras de umbrais, portais,voids, tão caros nos filmes de Lynch e Hitchcock, e tão presentes na literatura (O buraco na árvore de Alice e o Redemoinho que leva a casa de Dorothy para Oz), são figuras desconcertantes como a orelha decepada que Jeffrey acha no mato, onde Lynch dá um close como se fosse entrar no orifício dos tímpanos, paralelo a privada no quarto do Motel Bates. Estes portais para outro mundo, são como os territórios que os orientais chamam de penumbra ou escuridão, que para os ocidentais é considerado como negativo, mas para o Taoísmo é uma dimensão necessária para o equilíbrio da psique humana, tão mais positivo e importante que as regiões iluminadas e brancas. Carl Jung, que foi fortemente influenciado pela filosofia oriental também defende que o Inconsciente, geralmente considerado como negativo e um porão onde se guardam os traumas e pulsões doentias, é um depositório positivo, criativo e arquivo coletivo de muitas maravilhas, apesar de guardar alguns monstros. É bom lembrar que a cena da privada de Psicose foia primeira vez que se filmou este objeto sanitário na história do cinema de Hollywood, e serviu como portal para Marion se livrar de suas anotações sobre o seu roubo, como um abismo inconsciente para esconder sua culpa.

Figura 55: A misteriosa orelha de Veludo Azul.
As ensaístas Karla Patrícia Holanda Martins, Débora Passos de Oliveira, Maria Celina Lima Peixoto comentam no artigo : “A cortina rasgada: o cinema de Alfred Hitchcock e a teoria da imagem em Sigmund Freud”, sobre como os personagens dos filmes de Hitch são como guias para o desconhecido:
“Mesmo quando realizou filmes com enredos que, numa certa dimensão, eram traduções pedagógicas de teses psicanalíticas (dos quais Quando fala o coração de 1945 e Marnie, confissões de uma ladra de 1964 são os exemplos mais evidentes), Hitchcock conseguia expressar um efeito que colocava espectador e protagonista numa relação com a verdade que só podia ser semidita; o herói hitchcockiano é, afirma Veillon (1993, p. 108), "um equilibrista em trânsito para o desconhecido". Se, de um lado, ele satisfazia o interesse do espectador por apresentar a visão de mundo a partir do que conhecia da psicanálise difundida nos Estados Unidos, de outro o inquietava quanto ao sentido que lhe fora oferecido. Veillon (1993) aponta para o fato de o cineasta ter conseguido ir além dos conteúdos impostos pelos produtores, mesmo com relação à psicanálise. Ao comentar com Truffaut a respeito do filme Quando fala o coração, Hitchcock (Truffaut, 1967/1986, p. 98) define: "é uma vez mais uma história de caça ao homem, mas aqui envolta em pseudo-psicanálise". Ao mesmo tempo, revela que o que queria deste filme era "apenas rodar o primeiro filme de psicanálise" (Truffaut, 1967/1986, p. 97). Estas observações demonstram, de maneira paradoxal, o seu interesse pela temática freudiana e a consciência das diferenças entre a experiência psicanalítica e o lugar da psicanálise na cultura. Mas então, o que efetivamente a psicanálise poderia lhe oferecer?”
Também ilustram com conceitos de Freud e análises de Zizek sobre como Hitchcock queria desnudar a falsa e idealizada realidade através de seu cinema:
“Hitchcock confessou a Truffaut sua pretensão de realizar filmes "sem rombos, nem manchas" (Truffaut, 1967/1986, p. 15). Referia-se à sua tentativa de aproximar as imagens fílmicas das imagens do mundo de vigília. Sua atitude repousa em uma negação do entendimento do filme como sonho e da imagem como o equivalente da representação. O princípio do suspense supõe esta espécie de estado de vigília do espectador. É esta a sua inversão mais genial: reproduzir o estado de atenção e expectativa do sujeito no momento em que se encontra diante de algo (a imagem) que é um misto de virtualidade e realidade, ou ainda, que comporta a representação e seu negativo. Desta forma, ele forja uma situação, uma outra cena, em que o sujeito está frente a uma realidade que ao mesmo tempo que se impõe à percepção não é totalmente apreensível; ou seja, introduz-se aí a função pulsátil do olhar. SlavojZizek (2013) oferece uma definição exemplar dessa função paradoxal do olhar. Em sua última obra - Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético - ele destaca a recorrência insistente dessa temática nos clássicos de Hitchcock (Psicose; Os pássaros): sempre que a heroína (Lilah ou Melaine) se aproxima de uma casa misteriosa ou vazia, somos surpreendidos, mediante um salto de perspectiva, pelo ponto de vista da própria casa que reenvia este olhar para o sujeito. Para Zizek (2013), esse olhar da casa não deve ser jamais interpretado como um tipo de olhar subjetivado (alguém que observa do seu interior), mas em última instância como um olhar radicalmente vazio, uma espécie de olhar a priori não apreendido numa realidade dada: "a heroína 'não pode ver tudo', há um ponto cego naquilo que ela olha, e o objeto retorna seu olhar a partir desse ponto cego" (Zizek, 2013, p. 380). É por isso que afirmamos, sem hesitar, que a psicanálise tem muito a aprender com (ou a perguntar a) Hitchcock.”
Estes buracos como as cavidades no lugar dos olhos da mãe de Norman Bates, assim como a privada do banheiro de Bates Motel, e os olhos comidos do fazendeiro de os Pássaros são como a célebre frase de Friedrich Nietzsche: “E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti. Atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se está bem morto. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”.
Este horror esta registrado no grito mudo da personagem de Lydia, de Os pássaros (1963), que corre agoniada, com a expressão de horror, emudecida por uma angústia que cala o seu grito. Hitchcock pediu para que molhassem a estrada de areia quando Lydia vai visitar o fazendeiro, para que camionete não levantasse poeira, criando uma atmosfera de serenidade. Na cena que Lydia retorna para casa, após o choque da visão dos olhos-abismo, ela provoca um rastro de poeira com a camionete, demonstrando visualmente o seu estado de pavor.

Figura 56: Cena dos Olhos vazados de "Os Pássaros"
Outra cena que faz direta referencia a privada de Psicose é no filme “A Conversação” (1974)de Francis Ford Coppola, quando o personagem de Gene Hackman vai até a um banheiro, que desconfia ser o local em que um agente, seu amigo, foi assassinado. Ele abre a cortina da banheira abruptamente, tal qual Norman abre em Psicose, mas não encontra nenhum sinal de sangue, e depois segue seu olhar para a privada. Ao dar a descarga vê com horror e repulsa o sangue brotando do fundo da privada e transbordando até o assento. Zizev comenta esta cena no excelente documentário: O Guia Pervertido da Ideologia (2012), relacionando este portal de dejetos e excrementos como a coisa lacaniana, que provoca o temor ao olhar de volta, o pavor de que o abismo devolva como uma pulsão do id toda a escatologia que escondemos na “realidade”. A subversão deste olhar e da própria condução do suspense são caras nos filmes de Hitchcock. Ainda nos comentários do artigo:

Figura 57: Cena da privada em "A Conversação"(1974)
“O suspense é construído ainda a partir de outra regra: o cotidiano possui um potencial de anormalidade. No seu livro Do assassinato como uma das Belas Artes (1993), o escritor inglês Thomas De Quincey defende a tese de que um dos princípios estéticos fundamentais para que o assassinato tenha valor de arte é que as escolhas - vítima, local, momento - repousem sobre a regra geral da suposta normalidade. Para um belo crime não é fundamental um ambiente lúgubre: este deve ser cometido à luz do dia. A vítima deve gozar de boa saúde, ser um anônimo e não poder jamais contemplar a possibilidade de assassinar alguém. Tais regras são, na maioria das vezes, cumpridas à risca por Hitchcock. O suspense é atingido a partir do clichê, do banal, do familiar. A observação de Truffaut (1967/1986) quanto ao fato de este princípio ser tanto plástico quanto intelectual é valiosa, posto que nos chama a atenção para uma lógica desta construção: a que supõe a existência de uma potência de instabilidade no cotidiano. É um princípio estético, mas é, sobretudo, um princípio lógico; e, como tal, absolutamente arbitrário.”
Quando Hitchcock (Truffaut, 1967/1986), ao comentar o seu filme Os pássaros, diz que é preciso filmar flores que comem homens mais do que perfumes que envenenam, ele opta por uma lógica que não é a do senso comum. Admite que se inspirou em fatos reais - corvos atacando cordeiros - para filmar a sequência em que os pássaros arrancam os olhos de um homem. O traço por ele reproduzido na ficção é o afeto de horror que ambas as situações causam. Com esta estrutura, rompe com a tradição cinematográfica (e literária) que associa o fantástico aos fenômenos sobrenaturais e/ou irreais: o suspense hitchcockiano é efeito de uma percepção de irrealidade no que há de mais real.
Quanto à sustentação de um nível de apetência e curiosidade do espectador, Hitchcock diferencia pelo menos dois planos: um, em que apresenta uma visibilidade que pode ser compartilhada pelo público; e outro, no qual convoca o espectador para o entendimento de um nível subjetivo ou psicológico da trama. Ilustra suas estratégias com as aparições dos pássaros em planos secundários, sustentando o nível de curiosidade do espectador num limiar que não comprometia a atenção quanto ao conteúdo dramático manifesto. Desta forma, conduz o espectador do realismo ao simbolismo sem jamais abandonar as remissões à realidade. Trías (1986) identifica a genialidade do cineasta nesta capacidade em manter sempre um plano superficial, aparente, no qual se desenvolve a trama e um complexo mundo de referências simbólicas, todas, sem dúvida, possuindo um rendimento dramático na ação.
“Uma tal estrutura narrativa leva Bonitzer (1982) à afirmação de que a função do crime é produzir na tela uma mancha, um rasgo para onde o olhar do espectador se precipita; até este ponto da narração tudo parecia natural e inocente. A partir desta mancha, os signos são pervertidos e se instaura um estado de instabilidade. O ponto de partida são emblemas do convencional e familiar. Todavia, desde o início do filme, o público jamais adere totalmente à ingenuidade aparente da imagem. Se existe por parte do narrador a produção de duplos níveis narrativos, no que diz respeito à crença do espectador algo de semelhante se desenvolve. Com a finalidade de estabelecer esses diferentes níveis narrativos nos filmes, levando ideias e emoções ao paroxismo, o diretor opera um truque na maneira de narrar suas histórias: para cada avanço da trama faz corresponder um rearranjo no sentido.”
Hitchcock estava pronto para filmar a sua obra mais radical, mais sombria e revolucionária de toda a sua carreira. Naturalmente teria problemas com a censura, produtores e até mesmo com o público, que não estava preparado para o que iriam assistir, um filme baseado num assassino necrófilo, incestuoso, de meia-idade, caipira e pobre, que fazia colares com os mamilos de suas vítimas. Mas é claro que o livro e o personagem real que aterrorizou a imaginação dos EUA sofreria uma adaptação nas mãos do mestre do suspense, que tinha predileção por estórias macabras, e a sofisticação estilística de um autor que legou Vertigo e Janela Indiscreta às grandes obras-primas da Sétima Arte. Primeiro pensou no elenco. Escalou uma estrela como Janeth Leigh para encarnar Marion Crane que seria morta nos primeiros 30 minutos e contratou o jovem galã das matinês, Anthony Perkins, como Norman Bates pela sua aparência frágil, dúbia e quase andrógina, como se ocultasse algo surpreendente e revelador ao público.
Para nortear sua nova produção com inovação e o frescor de uma era que anteciparia a luta pelos direitos civis, a revolução sexual, a pílula, a minissaia, o movimento beatinik e Hippie, e a morte de um presidente carismático, Hitchcock resolveu utilizar sua equipe de sua serie de TV. Realmente a velha Hollywood estava com os seus dias contados. Produções milionárias de épicos religiosos e filmes de guerra nacionalistas, musicais estavam dando um enorme prejuízo. O Sistema de Estúdios de Hollywood que se transformou em um Império, como uma fábrica que repetia sucessos de forma industrial, estava em crise. O Star system, que agora não conseguia fabricar mais astros e estrelas, como nos anos 20 a 50, também estava sendo atacado pelos novos tempos, pelo público jovem que se identificava com um cinema mais pé no chão, afinado com as novidades do cinema Europeu, da nouvelle-vague francesa que ganhava prêmios em Festivais de Cinema como “Acossado” (1960) de Godard e “Os incompreendidos” (1959) Truffaut, assim como atores como Branco e James Dean. Estes filmes surpreendiam com uma nova narrativa, com a montagem de jumpcuts, som direto, câmeras Dolly e temática autoral. Na TV dos EUA também surgiram novos realizadores: roteiristas como Paddy Chayefsky, Rod Serling, diretores como Arthur Penn, John Cassavetes e Sidney Lumet abriram uma nova forma de fazer cinema, influenciando uma geração de diretores antenados com as mudanças comportamentais, políticas e sociais de uma década que se abria cheia de revoluções e novos paradigmas.
Como Hitchcock não era nada bobo e sentiu estas mudanças, principalmente porque lidava diretamente com estes novos artistas que trabalhavam em sua série de TV. Ele pensou em fazer o filme em preto-e-branco, diferente do exuberante Thechnicolor de suas produções anteriores como Vertigo e Intriga Internacional. O custo total da produção também cairia para um décimo do orçamento que estava acostumado, o que gerou desconfiança e insegurança nos diretores da Paramount, Estúdio que iria distribuir Psicose.
O pano de fundo de Psicose, que Hitchcock imaginou, é o cotidiano cinzento de pessoas ordinárias, confinadas em esperanças e medos miseráveis (solidão, falta de dinheiro, medo da polícia, esforços desesperados para obter uma parcela mínima de felicidade). O filme começa com uma invasão voyeurista da câmera passeando em uma panorâmica ao redor da cidade Phoenix, após as nervosas linhas que se cruzam nos créditos de Saul Bass, até em direção a uma janela de hotel onde se vê um casal deitado na cama, com roupa íntima após feito sexo.
Um dos depoentes, do documentário 78/58 (2017) de Alexandre O. Philippe, sobre a cena do Chuveiro de Psicose, faz um comentário interessante sobre a última cena de Intriga Internacional que faz alusão a um ato sexual e a primeira cena de Psicose, que mostra um casal após o coito, como se fosse uma continuidade planejada. Brincadeiras a parte, a mudança de clima, estilo, com temas e gêneros distintos de um filme caro como o anterior, para um filme barato, em P&B, de clima pesado e angustiante foi realmente uma guinada de 180º, mas que também tem vários elementos em comum, principalmente o tema do doppelganger, da punição e expiação religiosa e do complexo de Édipo. Hitchcock situaria esta nova história em um ambiente muito diferente das glamorosas locações de Vertigo e Intriga Internacional, com pessoas sem visibilidade social, muito diferente da vida de Hitchcock e família, que o ofereceu um interesse a mais de aprendizado sobre este mundo ao diretor.

Figura 58: Créditos e abertura de Psicose.
Marion Crane (Janet Leigh) e Sam Loomis (John Gavin) é um casal apaixonado, mas com problemas para se unirem. Sam tem dívidas com a pensão da ex-mulher e ganha pouco, Marion trabalha como secretária em uma imobiliária e tem salário baixo. Esta cena é terna, romântica, mas tensa. Temos a verdadeira sensação de que eles se amam. O figurino é representativo nesta cena. Gavin esta sem camisa, que apesar do seu porte atlético tinha certa vergonha em ficar com o dorso despido e Marion usando lingerie branca.

Figura 59: Cena com Marionde lingerie branca.
Temos a análise do artigo “Segunda Pele: Uma Análise Do Figurino Do Filme Psicose, De Alfred Hitchcock” de Bárbara de Souza Mandarano sobre como o diretor decidiu sobre as escolhas do figurino:
“Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock, é uma obra que enceta inúmeras possibilidades de reflexão e análise, desde aspectos ligados ao processo criativo e às formas como o público foi atraído para ela, até aqueles que fazem com que o figurino possa ser interpretado, nesse filme, não só a partir de conceitos oriundos do campo da moda, mas de teorias acerca da produção e recepção cinematográfica. Dessa forma, o figurino se estabelece como um recurso que Hitchcock se utiliza para a construção tanto dos personagens quanto do filme, no momento em que as informações são vinculadas pelo vestuário como elementos constitutivos da narrativa, capazes de fazer o espectador se identificar com o que presencia na tela. No figurino da personagem Marion Crane, de Psicose, é observada uma forte referência do estilo das criações de Christian Dior. Maria Rita Moutinho e Máslova Teixeira Valença destacam que: “na America, no fim da [2ª] guerra, as saias já tinham se tornando mais amplas: havia o desejo de realçar de novo as curvas femininas, e as mulheres sonhavam com saias rodadas dançantes” (MOUTINHO; VALENÇA, 2000, p.144). Hitchcock foi um dos diretores mais preocupados com a caracterização de suas personagens femininas. Ele dizia a Edith Head, sua principal figurinista, como desejava que fossem as roupas das personagens. O diretor não gostava que as atrizes dessem opinião, mas Edith conversava com as atrizes sem que Hitchcock soubesse, para saber seus gostos e o que as vestiam bem. Assim, ela confeccionou peças que revelavam muitas características das atrizes e não apenas das personagens: De acordo com LEITE e GUERRA (2002), o figurino é um importante componente na construção da obra fílmica, percorrendo a cena e o corpo do ator ou da atriz, marcando a época, o status social, a profissão, a idade do personagem, entre outros aspectos que visam à comunicação com o expectador. Na construção do figurino, a definição de determinadas roupas, composição e tratamento que é dada a elas indicam, ainda, uma significação, ou seja, conferem sentido ao personagem e ao próprio conjunto o filme. Conforme Umberto Eco: Porque a linguagem do vestuário, tal como a linguagem verbal, não serve apenas para transmitir certos significados, mediante certas formas significativas. Serve também para identificar posições ideológicas, segundo os significados transmitidos e as formas significativas que foram escolhidas para os transmitir (ECO, 1982, p. 17). O vestuário, nesse sentido, é parte de um processo social, no qual é imposto um sistema de classificação de objetos, destacando-se uma série de signos que, na linguagem do traje, possui um significado predeterminado. No cinema, o figurinista se volta para o indivíduo, na verdade, o personagem sobre o qual desenhará a intenção da narrativa. Ao servir-se da moda já existente, o figurinista escolhe e articula os significados que o vestuário pode ganhar a partir das inferências que se realizam entre aquilo que se vê na tela e o que se usa no cotidiano, entre o ficcional e o que se desdobra como convenção, realidade. Embora Alfred Hitchcock declare que, para ele, em Psicose, o tema assim como os personagens não tiveram tanta importância quanto o lado técnico do filme (HITCHCOCK; TRUFFAUT, 2004, p. 287), é possível perceber certa preocupação sobre a mise-en-scène, no instante em que o cineasta se dedica a escolher cada figurino que os atores usariam durante as filmagens. Essa preocupação com o figurino não só reflete o controle que Hitchcock exercia sobre todas as etapas da produção, mas revela como o desenvolvimento dos personagens estava de acordo com o seu desejo de como deveria ser a narrativa. Conforme Rita Riggs: Havia uma grande dúvida sobre se Janet usaria lingerie preta ou branca na cena de abertura. E isso durou algum tempo. Tínhamos as duas disponíveis, claro, e só na hora de filmar Hitchcock escolheu: branco para a primeira cena, preto para depois de ela roubar o dinheiro. Isso foi estritamente para o desenvolvimento da personagem. Ele tinha uma obsessão pela coisa da garota „boa‟ e a garota „má‟ (RIGGS entrevistada por REBELLO, 2013, p. 90).Esse caráter duplo dos personagens, que é um tema recorrente na obra de Hitchcock, pode ser visto como uma valorização do corpo feminino, quando o cineasta vê nas mulheres um reflexo, um desdobramento, da própria trama de seus filmes: “gosto de mulheres que também sejam damas, que reservem o suficiente de si mesmas para manter um homem intrigado. No cinema, por exemplo, quando uma atriz quer transmitir sensualidade, deve assumir um ar ligeiramente misterioso” (HITCHCOCK, 1998, p. 123). A aura de mistério emanada pela figura feminina não tem como alvo somente o personagem masculino com quem ela se aventura, mas também o espectador, para o qual ela se dirige de forma sutil, seja ao atrair o olhar masculino daqueles que estão na platéia, seja ao funcionar como uma espécie de ideal de sofisticação para as mulheres que lá estão. A forma como Hitchcock concebe as mulheres, em seus filmes, possui semelhança com a reflexão que Charles Baudelaire faz sobre a relação entre elas e a maquiagem: A mulher está perfeitamente em seu direito e cumpre até uma espécie de dever esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural; é preciso que desperte e que fascine; ídolo, deve dourar-se para ser adorada. Deve, pois, colher em todas as artes os meios para elevar-se acima da natureza para melhor subjugar os corações e surpreender os espíritos (BAUDELAIRE, 1995, p. 875-876).”
Hitchcock estava ciente dos limites impostos pela censura de Hollywood, mas, mesmo assim, por meio da personagem de Marion, a desafiou, vestindo Janet Leigh de forma provocante, com lingeries ousadas para época. Logo na abertura do filme, em um encontro de amor no horário do almoço, Marion está usando lingerie branca que, de acordo com a figurinista Rita Riggs, seria para evocar seu lado inocente e puro (RIGGS, 2008). Até esse momento, a personagem não cometera nenhum crime, daí, segundo Mariane Cara, “a cor branca, de candura, de seu traje íntimo” (CARA, 2008, p.86). Significativo, portanto, é a cor branca, denotando sua inocência, justamente de sua lingerie, em um momento histórico em que as mulheres não haviam conquistado uma liberalidade sexual tão plena assim. Na sequência, Marion rouba o dinheiro do seu empregador, e quando aparece no hotel prestes a tomar banho, ela já aparece com a lingerie preta, evidenciando seu espírito de transgressora e, mais que isso, agora sob um olhar de criminalidade. Simbolicamente, passou da pureza do branco para as trevas do preto. Dessa forma, a complexidade na composição do figurino hitchcockiano está justamente em situar os personagens, muitas vezes, com conflitos de identidade”
A trama como todos sabem se desdobra quando Marion é designada em depositar 40 mil dólares na conta da imobiliária pra um fechamento de negócio. O comprador, um velho e asqueroso milionário, fica jogando indiretas de que queria comprar Marion também. Isto a causa repulsa, e talvez, a partir deste momento, cansada com a falta de perspectiva profissional e amorosa, resolve dar uma guinada na sua vida, e fugir de Phoenix com os 40 mil dólares. Este twist inesperado muda o filme para outra direção, já estávamos acostumados a ver Marion como uma pessoa boa e honesta, e agora ela embarca em uma trajetória de medo e culpa. Durante sua fuga para outro local (Ela não tinha planejado nada, apenas queria fugir) Marion dirige pelas ruas e cruza com seu chefe em uma passagem para pedestre. Ele a olha com olhar desconfiado e ela fica claramente desconfortável. Começa então o seu calvário de culpa e remorso. Entra em uma rodovia à noite e passa a imaginar qual seriam as reações de seus conhecidos, como um recital de vozes acusativas e temerosas. Quando imagina a reação do velho milionário abusado ela esboça um sorriso sarcástico e até perverso. Sua fuga e roubo estavam claramente justificadas como vingança na expressão deste sorriso.

Figura 60: Mudanças de figurino sugerem mudanças no comportamento.

Figura 61: Sorriso de vingança de Marion.
Marion durante toda a sua participação em Psicose só exibiria um sorriso nesta cena do carro e na sequência do banho, quando decide voltar e entregar o dinheiro, libertando-se da sua culpa. Ela era uma personagem amargurada, triste e que não vislumbrava a possibilidade de felicidade. Sua Fantasia era nervosa e se sentia culpada durante o tempo todo por medo de punição. Tem a famosa cena que Marion é desperta, dentro de seu carro, por um policial com expressão inquisitória que a mira arbitrariamente com os olhos encobertos por óculos escuros. Esta é uma cena clássica do diretor que demonstra sua fobia por policiais (trauma de infância). Hitchcock fez diversas tomadas de Marion com plongée, de um ponto de vista alto, como se Deus a vigiasse, geralmente nas cenas que ela se esconde em banheiros para contar e retirar alguns dólares do roubo e as despesas de sua fuga. A música que Bernard Herrmann fez para Psicose e as cenas de perseguição mental de Marion foram revolucionárias. Ele usou apenas uma orquestra de cordas que criam a atmosfera de prisão emocional dos personagens, tanto de Marion como o de Norman. Herrmann pensou nesta orquestração como um duelo entre cores brancas e escuras, reforçando a dualidade psíquica dos personagens. Na sequência que Marion esta cada vez mais angustiada e com sensação de estar perdida, dirigindo a noite, com chuva intensa e o limpador de para-brisafica frenético (quase um renuncio da cena do chuveiro, para-brisa/facadas, e sua assombrosa e magnífica edição), o score dilata este torvelinho emocional para um grau delirante.
O professor de Música Alfredo Werney faz algumas observações sobre o score de Psicose:
“Psicose” possui uma rigorosa unidade estética. Pontuar e analisar os elementos de sua trilha sonora exige que não isolemos outros importantes componentes como a fotografia, a montagem, cenário, atores, dentre outros. A música do cinema se fundamenta numa dialética com a imagem, o que implica afirmar que ela não pode ser compreendida apenas pela sua organização própria. Com isso, não queremos diminuir o caráter inventivo da música de Herrmann, pois “a música de cena não é música em estado puro, mas em estado dialógico, o que não impede de ter a sua porção de livre especulação”. “Psicose” é uma obra que pode ser delimitada em dois grandes blocos dramáticos: o primeiro corresponde à fuga de Marion e o segundo às investigações de Sam e Vivian sobre o desaparecimento da fugitiva. A “cena do banho” é um intermezzo destes blocos dramáticos. O maestro americano se mostra sensível a esta mudança, visto que sua música atua como elemento da narrativa e intensifica as nuanças do roteiro. Na sequência da fuga de Marion a trilha se intensifica e o andamento se torna mais rápido. Em alguns planos a música fica sincronizada com elementos da própria cena. Podemos perceber esta rigorosa sintonia entre imagem e som (nomeada por alguns estudiosos de efeito mickeymousing) no momento da chuva, quando o para-brisa do carro se movimenta na pulsação rítmica das notas musicais. É provável que o compositor tenha feito a decupagem sonora a partir do objeto da cena (pára-brisa). No segundo bloco (após as facadas em Marion) a música assume uma função predominantemente psicológica, visivelmente direcionada para a representação do universo conflitante de Norman Bates. Esta mudança não anula a unidade estética da película e é compreensível: a intenção dramática do filme foi alterada, uma vez que não estamos mais diante da trama do furto de Marion, mas do seu estranho e repentino assassinato. A narrativa musical, assim como o roteiro, nos surpreende no momento do crime. O efeito acústico produzido neste intermezzo de ações dramáticas nos provoca sustos. Demasiado significativo é o fato de a música cessar – momentos antes do esfaqueamento – com o intuito de se valorizar a sonoplastia. O som “relaxante” e contínuo da água que sai do chuveiro é interrompido por uma melodia estridente e perturbadora. A construção sonora do assassinato de Marion Crane faz-se necessário uma análise mais detalhada dos elementos envolvidos na sequência do assassinato, posto que se trata, como vimos, de um instante fundamental da obra. O fato de o assassinato ter acontecido na ocasião de um banho nos parece muito simbólico: torna-se mais inesperado o esfaqueamento, já que o ato de banhar-se está vinculado à ideia de descanso e relaxamento. A condução feita por Hitchcock surpreende-nos mais ainda, pois o banho foi o instante fatal e mais violento de todo o enredo. Notemos que a música entra com o abrir das cortinas, como se iniciasse um espetáculo voyeurista. Os violinos tocam (glissandos) mis bemóis no registro agudo, com a dinâmica moltos forzato.”

Figura 62: Tensão na cena do pára-brisa.
Este momento clímax e de ruptura dará lugar para um a reviravolta, ou twist plot mais conhecido da história do cinema. No meio do caos da chuva e o para-brisa frenético Marion observa uma luz de vaga no motel a sua direita. Era o Bates Motel. Hitchcock comentou a seu roteirista, Joseph Stefano, que compreendera os objetivos do diretor para esta película, que na verdade o filme era sobre Norman. A escolha de uma estrela como Janet Leigh para o papel episódico de Marion era devido a importância do espectador adquirir uma posição subjetiva no desenrolar da trama, este fato é devido, sobretudo, à forma com que o diretor compartilha, com suas testemunhas, elementos essenciais ao enredo. Estas pistas são dadas a partir do jogo de imagens, recurso decisivo na constituição do suspense. O jogo de transferências entre os dois personagens se torna visível quando Marion vira objeto de desejo de Norman.
Uma cena bem ritualística é quando Marion esta no quarto do Motel e decide devolver o dinheiro e voltar para casa.Ela pega os quase 40 mil, exceto uma pequena quantia que gastou para trocar de carro, e dobra dentro do jornal, da mesma maneira que Norman dobra o corpo sem vida de Marion em um lençol, de forma lenta e cuidadosa. A jovem, depois de fazer os cálculos que quanto estaria devendo, joga estas anotações rasgadas na privada.O motiv deste jornal com o dinheiro reaparece quando Norman empurra o carro de Marion no pântano, junto com seu corpo e os 40 mil dólares (libertando o público deste macguffin). Toda esta cena, ritualizada no momento de limpeza do banheiro por Norman e a desova do corpo, cuidadosamente espelhada na cena de Marion encobrindo o dinheiro no jornal e se livrando das anotações na privada, tem uma função psicológica junto ao público, a de substituir a identificação do olhar subjetivo de Marion para Norman, já que torcemos para que o pobre e triste rapaz, aprisionado num Motel esquecido com sua mãe louca, não seja incriminado.

Figura 63: Norman e Marion.
Antes da cena que do chuveiro se passa uma das cenas que mais gosto, a do jantar com os dois na sala em que Norman decorou com os pássaros empalhados (Taxidermia). Nesta cena há vários sinais do estado psicológico de Norman e sua saúde mental. Apesar de ser apresentado como um jovem tímido e educado ele reage de forma incisiva, quando Marion sugere educadamente de que talvez a sua mãe estivesse melhor em uma instituição para idosos, devido ao temperamento descontrolado e autoritário dela. Ele se transforma de um gaguejante e excitado garoto ao lado de uma bela jovem, para uma atitude parecida como uma ave de rapina, como os seus corvos, corujas e gaviões empalhados. Mas faz de uma forma lenta e segura, inclinando o pescoço para frente, como se fosse uma mímica animal, e passa a encarar Marion com olhos aguçados como estivesse mirando uma presa. A jovem sente-se acuada com tantos olhares, o de Norman e os dos pássaros, e diz que vai para o quarto. Apesar de a cena conter informações subliminares sobre Norman não percebemos este momento como ameaçador, apenas subliminarmente.
Voltemos a Gilles Deleuze. O filósofo assinala o fato de que, muito cedo, o cinema europeu se defrontou com um conjunto de fenômenos: amnésia, hipnose, alucinação, delírio, e, sobretudo, pesadelo e sonho, inaugurando uma narrativa em torno do invisível. A partir destas considerações, o filósofo francês diferencia dois tipos de imagens produzidas pelo cinema, quais sejam: a imagem-movimento e a imagem-tempo, respectivamente. Se na primeira temos imagens em que os personagens exibem respostas imediatas a determinadas sensações, cada sensação correspondendo a uma resposta motora, no segundo caso temos situações nas quais os personagens, marcados pelo conflito, se mostram indecisos ou impotentes frente à escolha da ação. "Os protagonistas passam de atuantes a videntes, tornando-se uma espécie de espectador" Em outras palavras, ao invés da percepção-ação motora tem-se a percepção-pensamento. Esta reversão (de atuante a vidente) é fundamental na definição do lugar do espectador: agora ele se encontra incluído no filme. Deleuze aponta Hitchcock como o cineasta que inaugura esta reversão. Desta forma, a trama das imagens se esboça mais numa relação com o tempo, ao qual o movimento se subordina. É claro que a imagem-movimento não desaparece, mas passa a existir como "a primeira dimensão de uma imagem que não para de crescer em dimensões". Consequentemente, neste tipo de filme a modalidade temporal constrói uma determinada posição subjetiva em que protagonistas e espectadores tentam, via interpretação, alcançar uma percepção que está sempre adiante. Desse modo, é como se eles estivessem sempre atrasados para estabelecer ligações. Estas conjunções forjam espectadores e protagonistas atentos aos indícios e aos pequenos detalhes.

Figura 64: Norman na cena do jantar.
O jantar com Normal foi apenas servido sanduíches com um copo de leite. Já sabemos em filmes anteriores como Hitchcock utiliza o ritual da alimentação como personagem em seus filmes. Temos o famoso copo de leite envenenado em Suspeita (1941), em que Hitch coloca uma luz dentro do copo e Cary Grant sobe uma escadaria na penumbra dando destaque e tom de ameaça a este alimento. Também Hitchcock tinha fobia de ovos (vejam que leite e ovos são símbolos de alimento, mas também de maternidade, tema crucial em Psicose). Em uma cena de Ladrão de Casaca, um cozinheiro descontente com o personagem de Cary Grant, joga um ovo em uma janela com o tom de agredi-lo. Hitch filma o ovo escorrendo pelo vidro, para o seu pavor e repulsa. Também não faltam sequências com referencia sexual e malicia a comida como no piquenique em que Grace Kelly oferece a Grant: Peito ou Coxa? (de galinha é claro), também em Ladrão de Casaca.

Figura 65: Marion, cena do jantar.
Um detalhe importantíssimo antes da cena do Chuveiro é a observação voyeur de Norman através de um buraco na parede vizinha ao banheiro do quarto de Marion. Nesta cena percebemos um quadro que esconde este buraco. O quadro em questão é “Susana e os anciãos” do artista renascentista italiano Artemisia Gentileschi e é uma cena de estupro. A cena do quadro retrata a história de Suzana do Livro de Daniel. Na história, dois anciões ameaçam denunciar que ela estava sozinha com um rapaz no seu jardim, a menos que ela tenha relações sexuais com eles. Existem várias versões desta história em quadros italianos renascentistas e de flandres, e foram pintadas por Tintoretto, Rubens, Caravaggio, Rembrandt e muitos outros artistas. Mas este em particular é o que mais revela a imagem de violação sexual. Bates tira o quadro e vemos uma abertura na parede que tem o tamanho aproximado de sua cabeça, indicando ser uma prática comum desta perversão de Norman. Novamente temos a imagem do umbral misterioso, portal para o desconhecido e pulsões pervertidas, o elo entre a coisa lacaniana. O buraco para o olho é uma imagem hipnótica em um zoom bem detalhado e fotografado com a técnica expressionista realçando as obsessões do olhar de Norman. A imagem, como projeção cinematográfica, faz do público todos voyeurs, tanto pela identificação com Norman, como projetação fantasística, principalmente do público masculino que tem muita curiosidade em conhecer o corpo nu de uma das mais belas deusas de Hollywood. Assim o cinema de Hitch transforma todo o público em voyeur e até cúmplices de crime, como na cena em que o diretor propositalmente cria um artifício (coloca elevador mecânico-hidráulico dentro do lago que Norman usa para desovar os carros das vítimas) manipulando a descida do carro, que fica semi-coberto, provocando o envolvimento e torcida do público para que o veículo afunde. Outra dica semiológica e que em várias cenas Norman esta sempre comendo grãos de milho, como uma ave.
A cumplicidade com o personagem e público é fundamental para o andamento do suspense que estabelece as regras do cinema-pensamento. Hitchcock fantasiava que um dia ele construiria uma forma de fazer cinema que controlasse as emoções do público, como se fosse um grande órgão conectado com a mente do espectador. Uma tecla ele apertaria e o público começaria a rir, uma outra acionaria o medo coletivo. Mas também é fundamental que sem o atraso de consciência entre personagem e público, esta interação não funcionaria.

Figura 66: Norman e o quadro “Susana e os anciãos”
Figura 67: Carro de Marion no pântano.

Blood, Mother! Blood!
(Norman Bates)

Figura 68: Norman após descobrir o assassinato de Marion.
A reflexão sobre a ruptura dos protagonistas esta bem colocada no texto de “Desejo e pulsão em Psicose”, de Fernando Ribeiro:
“A introdução de Norman como novo protagonista para que o público se identifique impõe uma mudança formal importante do ponto de vista da narrativa, e que caracteriza a “psicose” que dá nome ao filme. Para Zizek, esse corte é dado pelas facadas desferidas sobre Marion nua e indefesa no chuveiro, cuja violência parece afetar a própria montagem. É um momento de grande impacto, quando a perspectiva sob a qual a estória é contada se desloca. Neste ponto se dá uma espécie de “subversão” do olhar do espectador, que se vê desde então forçado a abandonar a identificação primeira com Marion. A partir daí, não estamos mais no campo do desejo e do objeto faltoso, mas sob o domínio das pulsões cegas e repetitivas, onde o objeto comparece como excesso cadavérico, sejam os pássaros empalhados, ou os olhos vidrados (alegoria do oco da subjetividade) da morta com a cara colada no chão do banheiro. A “temporalidade” da pulsão é a de um tempo fora do tempo, sem passagem nem perda, o tempo dos velhos hábitos, da lentidão rural, versus o tempo veloz da cidade e do dinheiro. Trata-se, no caso da psicose, de uma repetição Desejo e pulsão ateleológica, que nega o objeto, como a do puro ato de sugar. O sujeito “partiu”, “quebrou”, não está “dividido” ou “inseguro” como no desejo, mas salta de uma identidade rígida para outra, sempre se eximindo da culpa, a qual implica uma divisão. Zizek avalia que, por não se apresentar como “faltoso” ou “desejante”, é impossível nos identificarmos com Norman.”
A Cena do chuveiro é considerada a melhor e mais detalhada e bem produzida montagem da história do cinema, juntamente a da Escadaria de Odessa de O Encouraçado Potemkin (1925) de Sergei Eisenstein.
Alfred Verney explica a importância da famosa música de Herrmann que fez a cena do chuveiro:
“Os glissandos se (con)fundem com os gritos da atriz. Vejamos algumas conexões sugestivas que compõem esta paisagem sonora:
Relação entre a trilha sonora e a faca – Em alguns planos o ritmo das punhaladas está sincronizado com o ritmo das notas agudas do violino. Além disso, há uma relação com a textura da faca. Da mesma forma que a faca é bem fina as notas são bem agudas. A intensidade das punhaladas é reforçada pelas arcadas intensas dos violinos. “São os acordes musicais que fazem o corte no corpo de Marion”, nos disse Heitor Capuzzo.
Relação entre a trilha sonora e Marion – Bernard Herrmann simbolizou musicalmente os gritos de Marion nas notas estridentes executadas pelo violino. A respiração da atriz, cada vez mais lenta, foi simbolizada pelas notas graves que sofrem uma queda de andamento e ralentam junto com a pulsação dela. O registro grave também reforça a atmosfera de “gravidade” do crime.
Relação entre a trilha sonora e Norman Bates – O salto brusco do agudo para o grave nos remete a ideia de dupla personalidade de Bates que, assim como a melodia, oscila entre dois polos. Notemos, entretanto, que estes dois polos não são repulsivos, pois dialogam: tanto a mente do psicótico como as duas vozes melódicas. Os desenhos melódicos ressaltam a confusão mental do personagem.
É notável o equilíbrio dos elementos sonoros envolvidos na sequência. Ruídos de facadas, chuveiro, cortina e gritos se amalgamam com as arcadas intensas das cordas e compõem um desenho sonoro matizado. O efeito acústico que se fixa é pouco comum: as frases musicais dos cordofones se aproximam de ruídos e os ruídos do ambiente se aproximam de música (stricto senso). A composição visual da cena é homóloga, logo variadas formas se mesclam: fluídas (água, sangue), pontiaguda (faca), esféricas (ralo, olho, vaso).
Não fosse pela expressiva montagem – tanto dos planos sonoros como dos visuais – possivelmente não perceberíamos a violência desse assassínio. A articulação vertiginosa das tomadas imprimiu um ritmo cinematográfico que contrastou com sequências anteriores do filme, em virtude da lentidão da pulsação rítmica de outras tomadas. Por consequência gerou-se uma cena recortada, igualmente aos violentos golpes de punhal impressos no corpo de MárionCrane. Observa-se, com assiduidade, que o momento de banhar-se é filmado com poucos planos e a articulação destes se dá em um ritmo lento, usualmente para demonstrar a tranqüilidade deste ato. Contudo, o banho no “Motel Bates” não havia de ser comum: o ritmo da montagem, apoiado por intervalos dissonantes nos violinos, anunciara a fatalidade. É significativo o fato de que nesta cena de apenas quarenta e cinco segundos foram utilizados setenta planos, os quais foram filmados em sete dias.
Ainda nos remetendo a este momento do filme, verifica-se que há uma correlação timbrística sutil. O timbre e a intensidade da melodia dos violinos nos fazem lembrar os grasnidos estridentes de algumas aves. É oportuno recordarmos que em cenas anteriores visualizamos aves empalhadas na sala de visitas de Bates e imagens de pássaros no quarto de Márion. Alfred Hitchcock, versando sobre este assunto, nos afirmou:
Os pássaros empalhados me interessam muito, como uma espécie de símbolo. Naturalmente, Perkins se interessa pelos pássaros empalhados porque ele mesmo empalhou sua mãe. Mas há um segundo significado, com a coruja, por exemplo: essas aves pertencem ao reino da noite, são espreitadoras, e isso afoga o masoquismo de Perkins. Ele conhece bem os pássaros e sabe que está sendo vigiado por eles.
A música de Herrmann contribui, sobremaneira, para apoiar os simbolismos do discurso fílmico comentado acima pelo cineasta inglês. Sabe-se, embora, que o diretor de “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958) não queria que a sequência mais divulgada de sua obra fosse musicada. Porém, o trilheiro, ciente do seu ofício, contrapôs-se e a musicou.
Um outro momento muito musical são as tomadas em que Norman limpa os destroços do crime. Os sons do ambiente são trabalhados com bastante desvelo: cada um dos movimentos do personagem é valorizado e a música é silenciada. Silêncio este muito significativo, pois é o tempo em que se inicia um novo bloco dramático. A detalhada limpeza simboliza o recomeçar desta nova trama. A música, dessa forma, cala e o design sonoro impera, para que possamos reconstruir tudo a que assistimos antes. Bates também precisa de um tempo para reorganizar sua mente.
A montagem dos sons do ambiente foi desenvolvida com um intuito de se criar uma estética própria do ruído, não se trata de uma mera tentativa de reproduzir o som “real” dos objetos em cena. É recorrente na filmografia hitchcockiana a rigorosa elaboração dos sons diegéticos. Filmes como “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Janela Indiscreta” (Rear window, 1954), possuem um mundo sonoro particular que extrapolam o real e atingem o poético.
Figura 69: Famosa cena do chuveiro.

É importante comentar que a música na cena do chuveiro começa frenética como a pulsação e batimentos cardíacos de Marion, quando a “mãe” abre abruptamente a cortina e vai diminuindo na sua intensidade, como uma sístole e diástole que se aproxima da morte da personagem e acaba a mão de Marion se apoia na cortina desprendendo dos arcos e ela por fim desfalece no piso do banheiro. O som diegético da água da ducha misturado ao sangue entrando pelo ralo (Imagem em espiral ao buraco negro ou portal dimensional) reforça dramaticamente o brutal assassinato e o esvaziamento da vida. O signo da espiral na cena do ralo remete diretamente as dinâmicas espirais cósmicas e do buraco negro, imagens de abismo que Stanley Kubrick também usou em “2001, Uma Odisseia no Espaço” (1968), os movimentos cíclicos da tripulação na nave sem gravidade, no olho vermelho de Hall que delira e canta uma canção nostálgica que fala sobre loucura, assim como o olho estático de Marion, que também gira em espiral, quando a câmera se distancia. Estas cenas são momentos enigmáticos sobre o mistério da morte e o abismo de nosso conhecimento sobre este outro lado, tão questionador, que instiga todo o pensamento filosófico da humanidade. Estes segundos finais de vida da heroína de Psicose é talvez o momento mais poderoso e poético da morte filmada da história do cinema, assim como a boca colossal de Kane dizendo “rosebud” antes de morrer.
Vamos falar agora sobre o papel misterioso e assustador da Sra. Bates. Ela aparece pela primeira vez no filme, quando Marion olha para a casa que fica na pequena colina ao lado do Motel. A imagem de uma silhueta iluminada acentuada pela luz do quarto e destacada pela noite escura e chuvosa ao redor. A imagem vista pelo olhar subjetivo de Marion em contre-plongée e nos dá a sensação de estarmos sendo vigiados e acusados de alguma coisa. Uma sensação de dominação e até masoquismo. Para Hitchcock, os pássaros encenam a libido materna, já que a mãe vem do alto sobre o bebê, tese que será retomada em Os pássaros (1963).Nesta cena Lydia (Jessica Tandy), depois do choque do ataque dos pássaros, fica catatônica, mas pede que Melaine (TippiHedren) suba ao segundo andar onde acontece a cena que a jovem fica encurralada em um quarto e é atacada por pássaros. Como em Psicose novamente os pássaros são a materialização da libido selvagem, o id da mãe, que observam, e em The Birds atacam com selvageria em uma clara manifestação de ódio e ciúmes.
Figura 70: Ataque de os Pássaros (1963)

Hitchcock já tinha usado esta imagem de silhueta dominadora vista de baixo para cima em “A Sombra de uma Dúvida” (imagem do Tio Charlie que ameaça a sua sobrinha) e em Vertigo, na cena que Scottie segue Madeleine e é vista de uma janela, da casa que pertenceu Carlota, com estilo arquitetônico muito próximo da casa de Norman Bates. No interior desta casa, transformada em pensão, temos a clara impressão que o interior desta poderia ser o mesmo ambiente que foi usado em Psicose, com estilo vitoriano-gótico, e decoração de madeira e papel de parede e com semelhanças também com a famosa escadaria que liga a sala com o 2º andar. Scottie é atendido por uma idosa que poderia se assemelhar com a mãe de Norman, pelo coque do cabelo e pelo figurino.
A ideia de sermos vigiados por uma presença onisciente não é apenas religiosa, mas ontológica, já que sempre pensamos na figura da mãe, em nossa infância como uma onisciente, cuidadosa, severa e vigilante. Sempre quando pensamos em fazer algo errado, na infância, tememos pela repreensão de nossos pais, principalmente da mãe. Até mesmo quando a criança machuca,a primeira reação é gritar pela mãe, como se ela estivesse sempre ao lado. Norma disse a Marion que “a mãe é o melhor amigo dos meninos”.
Figura 71: Silhueta da mãe de Norman.

Figura 72: Judy, no olhar subjetivo de Scottie.

Em seu ensaio Totem e Tabu (2013) sobre o Complexo de Édipo, Freud se debruça ante a possibilidade de pensar o sistema totêmico por um viés ainda não utilizado e menosprezado pelos etnógrafos da época: a inserção da figura paterna no lugar ocupado pelo animal totêmico. Isto se deve a dois pontos de contato entre a infância e o totemismo: a completa identificação com o animal totêmico e a atividade emocional ambivalente em relação a ele. Tal especulação não é um fato inovador da psicanálise, posto que os primitivos possuíssem essa noção, porém os etnólogos não sabiam o destino a ser dado a esse fato. A psicanálise apenas utiliza-o como um meio para acessar as origens do totemismo e da exogamia. As provas que corroboram essa aproximação residem nas leis do totem: não matar o totem e não ter relações sexuais com as mulheres do clã totêmico. Mas se o totem foi oriundo de um matricídio, como foi no caso de Norman que matou a mãe por ciúmes, quando tinha 13 anos ao flagrar com um desconhecido. A mãe se tornaria um Totem, a apavorante figura da mãe empalhada e os olhos vazios como um abismo, proibindo mentalmente o desejo de Norman por outras mulheres. Seu desejo estaria mortificado, ou seja, seria transformado em perversão e fantasia necrófila. Caso desejasse um jovem bonita ela fatalmente seria alvo desta fantasia.

Figura 73: Camiseta sobre Psicose, que popularizou a psicanálise na Cultura Pop.

Figura 74: Olhar e desejo: cena de Quando Fala o Coração (1945)
Após o desaparecimento de Marion, seu amante Sam (John Gavin) e sua irmã Lila (Vera Miles) contratam um detetive, Milton Argobast (Martin Balsam), para encontrar o paradeiro da jovem. Argobast procura vestígios na região e vai até ao Motel Bates para saber se ela tinha hospedado por lá. Conversa com Norman, interrogando se ela tinha hospedado em um dos quartos e notou um certo nervosismo no gerente. Também passa a suspeitar que Norman estivesse encobrindo a estadia de Marion. Em uma cena, ao olhar o livro de entrada e saída de hospedes, Hitch faz um travelling de câmera seguindo o movimento de corpo e pescoço de Norman, tal qual uma ave. Argobast pergunta sobre se mais alguém vivia na casa ao lado do Motel, mas Norman nega, contradizendo a visão do detetive da silhueta de uma senhora na janela do 2º andar. Argobast decide voltar em outra hora para fazer perguntas à mãe de Norman e comunica por telefone a Lila sobre esta decisão. Em seguida teremos uma nova cena de assassinato, quando o detetive sobe a escada e a câmera faz um plongée para baixo, revelando uma figura feminina saindo do quarto e esfaqueando a cabeça de Argobast. Hitchcock utiliza uma técnica, que descreve a queda de Argobast nas escadas. Usa um carrinho com cadeira na escada, que Martin Balsam fica sentado, fazendo uma mímica de queda,com a câmera na posição frontal do ator. No fundo, Hitch usa um backprojection do final da escadaria. A Câmera funciona como olhar subjetivo da mãe, que acompanha a queda de Argobast, e quando ele finalmente cai da escadaria, um novo ponto de vista se abre com a mãe apunhalando o detetive.A cena sugere um ato sexual,já que a assassina estava sentada no quadril de Argobast.
Figura 75: Cena da escadaria (morte de Argobast)

Truffaut já dizia que Hitchcock filma as cenas de amor como se fossem um assassinato e as cenas de morte como se fossem de amor (sexo).Na cena seguinte a câmera funciona como o olhar de Deus ou do Id da mãe. Após o assassinato Norman novamente tem que se livrar do corpo e limpar o local, mas esta cena é eclipsada pelo diretor, já tinha mostrado ao público de como Norman se livra dos corpos. Após o crime perturbado rapaz resolve punir a mãe e a leva no colo do seu quarto (2º andar) para o porão da casa. Novamente a câmera esta posicionada de cima para baixo, não revelando o rosto, apenas o corpo da mãe.
Para Slavoj Žižek esta cena representa psicanaliticamente as estruturas mentais de Norman. O quarto no 2º andar estaria ligado diretamente ao superego de Norman, por ser o quarto da mãe, que o domina mentalmente e sexualmente, com sua presença arbitraria e vitoriana. O primeiro andar é o ego de Norman, local em que ele esta mais a vontade, toca piano, faz os seus lanches e passa mais horas de seu tempo. O porão é o território do id, e como Freud já tinha afirmado que o superego esta diretamente conectado ao id, onde as pulsões autoritárias, narcisistas e perversas afloram. Também é local em que Norman faz seus bonecos empalhados de pássaros (também representação do id da mãe). Estes locais psíquicos serão revelados em seu interior pela nova personagem-guia, a irmã de Marion, Lila Crane.
Após o desaparecimento do detetive, Sam e Lila resolvem ir até ao Motel para investigar. Enquanto Sam distrai Norman com perguntas, Lila entra na casa de Norman a procura de respostas. Primeiro ela sobe até o segundo andar, tal qual Argobast, despertando no público a angústia do suspense, e penetra no quarto da mãe.
Hitchcock sempre filmou a visita de personagens temerosos ou fascinados, em locais como quartos, corredores, com uma total reverência, fascinação ou medo, como nos filmes Rebecca (1940) e Agonia de Amor (1947). Em Rebecca, Mrs. De Winter (Joan Fontaine) entra no quarto de sua antecessora com a maior curiosidade. A música de Franz Waxman, usada tanto em Rebecca como e Agonia de amor, são similares com um letmotiv parecido. O olhar fascinado pela presença sobrenatural da morta, que parece ter o poder de engoli-la, é trabalhado com um suspense sutil que mistura duas pulsões contraditórias, de atração e repulsa. O mesmo acontece quando o personagem de Agonia de Amor, o advogado Anthony Kane (Gregory Peck) entra fascinado no quarto de Maddalena (parônimo de Madeleine de Vertigo), sua cliente que esta defendendo em um processo de assassinato. Ele esta se apaixonado por ela, sentimento comprovado, quando olha para as suas roupas intimas, deixadas na cama, sua penteadeira e um fabuloso retrato pintado de sua musa no alto da cama. O rosto do retrato (Alida Valli), muito bela e usando um lenço negro esvoaçante (como o figurino de Madeleine em Vertigo), evocando a figura da Medusa de Caravaggio. Este anseio de estar penetrando em um local sagrado (Quartos de Rebecca, Maddalena, e Sra. Bates), e ao mesmo tempo misterioso e ameaçador,é a quintessência do cinema de Hitchcock, a de estar entrando na nostálgica, mas sombria psique materna (os quartos são na maioria decorados a moda Vitoriana, período em que Hitch era criança e vivia com seus pais). Temos estas situações parecidas no filme Vertigo, quando Scottie segue Madeleine em museus, cemitérios, pensões de arquitetura vitoriana-gótica e florestas de árvores milenares. É interessante notar que os nomes de alguns personagens femininos remetem a arquétipos bíblicos como: Rebecca, Lilah (Lilith), Madallena e Madeleine (Maria Madalena), e nas duas últimas a alusão a mulher proibida e desejada (prostituta), mas também sacralizada reforçam o ideal feminino de Hitchcock, o da loira bela, conservadora, mas um vulcão na cama (misto de meretriz e santa).

Figura 76: Quarto de Maddalena em Agonia de Amor (The Paradine Case) 1947
A marca do corpo na cama da Sra. Bates demonstra que ela ficava imóvel, quanto esta deitada, uma informação que Hitchcock deixa para o espectador de que a “mãe” esta na verdade morta, como uma múmia em seu sarcófago. Lila continua a observar os objetos do quarto, e se assusta ao se ver em uma imagem de espelho refletida em outro espelho. Esta imagem que espelha o infinito para os lados opostos, mais a fantasmagoria do quarto, é como um jump scary metafísico que revela a vida passada e a futura em uma cadeia de repetições eternas, assim como o mito da Roda da Fortuna e o pensamento pessimista de Nietzsche sobre o Eterno Retorno, em que vivemos em uma cadeia eterna de repetição. Como já tinha comentado anteriormente sobre a influência de Poe na obra de Hitchcock, Psicose é talvez o filme que mais realça esta extensão. A formulação do mito de Doppelgänger em William Wilson de Poe é utilizada nos duplos de Psicose, nos personagens de Marion e Norman. Hitch utiliza em diversas cenas chaves imagens refletidas destes dois personagens em espelhos ou janelas. Estas exposições de reflexos realça a condição narcisista destes personagens, que transitam em seus duplos, como se estivessem sendo conduzidos por estas entidades psíquicas.
O pensador Homero Vettorazzo Filho faz uma análise sobre o mito do espelho (Narciso) na literatura fantástica, que também pode ser associada aos duplos de Psicose:
“Existe controvérsia, nas teorizações psicanalíticas, sobre como considerar a condição narcísica. Opto por seguir Freud (1914/2004) que relaciona o narcisismo com os processos identificatórios, mostrando ser esta a nova ação psíquica necessária para saída do auto-erotismo rumo à constituição de um Eu,2 que tende a uma unidade do indivíduo em contraponto à dispersão auto-erótica. Tal processo identificatório é configurado, em “Introdução ao narcisismo”, na imagem de “sua majestade o bebê” proposta por ele como efeito do narcisismo dos pais identificado na criança. Ao lado disto, nesse mesmo trabalho, Freud reformula sua teoria pulsional propondo que o Eu se constitui à medida que se toma por objeto libidinal, reforçando assim a idéia de um Eu que se estrutura em um processo do qual o narcisismo faz parte.
A relação entre “imagem” e o desenvolvimento do Eu, como subjetividade, sempre esteve presente nas teorizações psicanalíticas. Lacan, seguindo Freud, propôs com a noção de estágio do espelho um momento constitutivo, no qual se produz a partir da identificação à imagem do outro – matriz identificante –, uma imagem unificada de si, correspondente aos primeiros esboços do Eu. Ao reconhecer sua “imagem”, a criança inicia uma relação especular com ela, correlata à sua relação com a mãe, cujo olhar é tal qual o próprio espelho em que se vê. Tal condição nos permite ainda pensar a questão narcísica sob o vértice do “outro” que, implicado em seu próprio narcisismo, também se vê refletido na própria imagem que projeta. Temos, portanto, neste momento inicial dois espelhos.
Para Borges (Cerqueira, 2005/2007), dois espelhos opostos bastam para se construir um labirinto. Tal observação parece-me uma metáfora privilegiada porque nos permite considerar os processos muito precoces da constituição do Eu representando-se e estruturando-se em função de suas formas de vinculação com este “outro/espelho” – de quem o Eu não só está indiferenciado, como ainda o tem como referência de sua existência – e ao mesmo tempo, a partir daí, pensarmos o que é visto e refletido também pelo “espelho” nessa duplicidade com o Eu que nele se espelha.
A ideia de labirinto em sua figuração de dispersão, de multiplicidade de trajetos que se entrecruzam e se repetem, me parece extremamente expressiva como modelo de constituição do nosso psiquismo em sua dimensão primitiva, ou seja, de pictogramas, audiogramas, impressões olfativas, táteis, que, informes, procuram organização e derivações.
Borges (Cerqueira, 2005/2007), vê o homem perdido dentro de um caos, como em um labirinto, onde o fantástico e o real estão de tal maneira entrelaçados no argumento, que se torna praticamente impossível isolar um do outro. O autor pensa a escritura como uma forma privilegiada de poder se lutar contra esse caos. Usa assim a narrativa fantástica como um processo de transfiguração em que, alternando o real e o fantástico, recria o mundo por meio da multiplicação linguística, levando o leitor, sob o efeito de uma “magia da linguagem”, a “redescobrir”, numa constante intertextualidade, a realidade em que vive.
Esses propósitos de Borges chamam minha atenção porque configuram, a meu ver, com muita propriedade, a função do trabalho analítico. As marcas primitivas impressas em nossa mente devem ser retranscritas, durante a estruturação de nosso aparelho psíquico, em um contexto simbólico mais elaborado. O trabalho analítico tem a função de ampliar as possibilidades de simbolização por meio das associações, de pontes simbólicas, de dramatizações e das atuações que, ocorrendo dentro do par analítico, ganham expressão por meio de uma narrativa fantástica também produzida pelo par. Sob o vértice analítico, diferentemente da literatura fantástica, penso que a função da narrativa fantástica assim constituída na sessão é tanto a de discriminar o ficcional – tendo em vista a implicação e a apropriação do íntimo de si – como a de minimizar a perda da realidade. A narrativa parece assim se constituir em uma nova escritura, nova impressão, do que se expressa entre o par analítico, iluminando e abrindo novas modalidades de comunicação entre as representações que nos constituem.”
Figura 79: Lila vendo sua imagem repetida entre dois espelhos.

Orson Welles trabalhou também com o labirinto de espelhos nos filmes Cidadão Kane (1940) e A Dama do Cine Shanghai (1945). Welles utilizou o tema do duplo e do Real-Irreal em quase todos os seus filmes. Em suas atuações como ator ele geralmente usava maquiagem e também fazia truques de mágica profissionalmente, reforçando a sua predileção por questões transitórias entre a realidade e o falso, como se estas dimensões andassem juntas e fossem intrinsecamente ligadas.

Lila no quarto da Sra. Bates
Nos filmes de Hitchcock as mulheres que exercem influência do Além Túmulo, como Rebecca, Madeleine, Carlota Valdes e Sra. Bates, são arquétipos/signos que Freud identificou como estranhos. Assim como o Estranho/familiar, também conhecido como “sinistro” e “hominoso” nas tramas de suas obras são tratadas como o ‘Duplo” que demonstram a angústia da duplicidade. Freud definiu através da literatura fantástica (Poe, Hoffman) e criou o conceito de estranho, ou seja, os dois: consciente e o recalcado. Através da técnica cinematográfica que Hitch aprendeu com o Cinema Expressionista e com Murnau ele desenvolveu e adaptou este método para o seu cinema de aparências e fantasmagoria (Rebecca, Suspeita, Agonia de Amor, Vertigo, Psicose, Os Pássaros) Ele utiliza a ilusão do movimento através das luzes e sombras, para evocarem duplicamentos, aparecimentos e desaparecimentos, projeção, identificação e percepção. Estas fantasmagorias podem levar o herói ao abismo como em Scottie e Thornhill e na completa danação, como foi com Norman.
Figura 82: Reflexo de Marion e Norman quase se fundindo.

Após Lila sair angustiada com a pesada atmosfera do quarto da Sra. Bates ela se dirige ao quarto de Norman e desfila seu olhar por alguns objetos, como brinquedos de sua infância, um disco da Heroica de Beethoven, e um caderno sem capa, talvez com imagens pornográficas, já que Lila fica chocada com o que vê (os livros de imagens pornográficos eram vendidos clandestinamente em que as cópias não tinham nenhuma informação ou arte na capa). A impressão que temos é que Norman ainda esta aprisionado ao seu mundo infantil/adolescente e totalmente escravizado pela fantasmagoria da mãe. Sentimos nesta sequência, em que Lila transita pelos cômodos (Quarto da mãe, quarto de Norman e porão) como se fosse uma viagem pelos estados psíquicos de Norman (Superego, ego e id). Finalmente Lila vai até ao porão e vê a figura da mãe de costas, em uma cadeira de rodas. Ela toca em seu ombro e como se estivesse viva gira em torno de si para revelar a figura mumificada com os olhos vazados. Lila grita e em um gesto de pavor soca com a mão a lâmpada ligada por um cabo ao teto do porão. O grito de Lila mais a oscilante luz, provocando um serpenteamento de luzes e sombras, na melhor iluminação expressionista, oferece a dramática ao público a entrada de Norman travestido com a roupa da mãe e uma peruca gritando “Eu sou Norman Bates”, como se o títere lutasse em estertor contra a sua persona assassina e dominadora. Nesta sequência Hitchcock não utilizou a música de Herrmann, o que provocou risos na plateia em suas primeiras sessões testes. Para Hitch isto seria o fim do filme devido esta reação do público. Novamente volta a sala de edição e incluiu a música da cena do chuveiro, que tornou a cena muito mais aterradora e impactante. Vemos Norman sendo segurado por Sam e seu corpo, como se estivesse lutando com ele mesmo, se retorcendo, assim como o seu rosto, exibindo rugas de expressão infantis e tresloucadas em uma magnífica interpretação de Perkins.
Após o choque, Hitchcock pensou que o público precisava de interpretações científicas e psicanalíticas e incluiu um novo personagem, o psiquiatra Dr. Fred Hichman (Simon Oakland), que revela sobre o estado mental de Norman, que agora estava dominado pela persona de sua mãe morta.
Figura 83: Norman/Mother

No artigo: “PSICOSE: Norman Bates e o Complexo de Édipo”, os psicólogos Jean Claudio dos Santos Parra, Mariely de Lima Andrade e Susie Donero desenvolvem a explicação do personagem Fred Hichman com mais propriedade:
“Oliveira e Gutemberg (2015) apontam que a narrativa do romance Psicose (1959) foi baseada no caso do serial killer americano Ed Gein, que cometeu assassinatos e exumou corpos femininos nos anos de 1950. Para Matos (2012, p. 32) “Uma das questões a serem discutidas ao longo do filme, até mesmo pela relação com o assassino Ed Gein, é a de que o assassino de Psicose cometia seus crimes em virtude de sua mãe manipuladora e também por problemas com figuras femininas”. De acordo com Oliveira e Gutemberg (2015, p. 4), “Norman cresceu escutando sua mãe dizer que o sexo era perverso e que todas as mulheres não prestam, exceto ela. Desse modo, ele começa a desenvolver certo fascínio pela mãe, se apaixonando”. Essa constatação leva a pensar na problemática do complexo de Édipo da teoria psicanalítica, pois como foi apontado anteriormente em Bock et al. (1999), no complexo de Édipo, a mãe é o objeto de desejo do menino, e o pai é o rival que impede seu acesso ao objeto desejado. Assim de acordo com Fodor et al. (1950), na fase edípica, o menino teria uma relação muito próxima a sua mãe, mas após a instauração da castração, entendida como a interdição da mãe como objeto de desejo, realizada pela autoridade paterna, a criança passaria a internalizar as regra e normas sociais. Assim, ao final do complexo de Édipo, “a mãe é 'trocada' pela riqueza do mundo social e cultural, e o garoto pode, então, participar do mundo social, pois tem suas regras básicas internalizadas através da identificação com o pai ou substituto” (BOCK et al., 1999, p. 98). Assim, segundo Bizarro (2000, p. 4), “Norman Bates é um exemplo de um rapaz que não teve oportunidade de ultrapassar o complexo de Édipo visto que o seu pai morreu quando ele era uma criança, não podendo introduzir nele o medo da castração”. Podemos perceber através do exposto que no caso de Norman, a problemática edípica não se é elaborada, pois diante da interdição da mãe, como objeto de desejo, emanada pela figura paterna, Norman cometeria o parricídio, como aponta Gontijo e Campo (2016, p.9), “O amor platônico que Norman sente pela mãe, o incita a matar o próprio pai”. Podemos inferir a partir dessa constatação que Norman ficaria fixado a essa relação com a mãe, não conseguindo lidar com qualquer possibilidade de separação entre eles, como aponta Gontijo e Campos (2016, p. 9) “Nas três formas de se contar história de Norman Bates, é possível visualizar coisas em comum, como o fato de serem controlados pela mãe, e de serem incapazes de a largarem”. Mas a trama do personagem não termina assim, se na infância, Norman comete o parricídio em função do amor que sente por sua mãe, ao final do filme, é constatado que, na adolescência, Norman assassinaria sua mãe e o padrasto envenenados por motivos de ciúme (GONTIJO; CAMPOS, 2016). Aqui o leitor pode contestar: com a morte da mãe, Norman não teria promovido a separação entre eles, contrariando toda a análise realizada? E nesse momento, a trama se intensifica e é revelado que “Norman não consegue viver sem a presença da mãe, então, ele rouba-lhe o cadáver (...) Ele queria interagir com ela, por isso, ele assume para si a personalidade da mãe, atribuindo à mulher a culpa por todos os seus crimes (SILVA et al., 2015, p. 10). Assim podemos observar a partir do filme Psicose (1960) que a patologia do personagem se agrava exatamente quando a sua mãe morre e a ausência dela se torna insuportável, assim Norman “desenvolve um transtorno dissociativo de identidade, que faz com que ele assuma por vezes a personalidade da sua falecida mãe” (GONTIJO; CAMPOS, 2016, p. 4). A partir de Freud (1921/1974) percebemos que durante a problemática edípica, pode ocorrer de uma escolha de objeto regredir para uma identificação, como aponta Moreira (2004) “O menino pode se recusar a abandonar a mãe e transformar sua catexia objetal em uma identificação regressiva; pode espelhar-se na mãe como outro-narcísico”. Assim podemos notar, através da análise do filme Psicose (1960) e da teoria psicanalítica, que amor que Norman mantinha pela sua mãe é transformado em uma identificação com ela, produzindo outra identidade no personagem, como demonstra Oliveira; Gutemberg (2015, p. 134), “Na prisão, é através da fala de um psiquiatra que temos conhecimento de que quem comete os assassinatos é Norman – travestido – em meio a um transtorno de personalidade que o faz acreditar ser sua mãe”. Dessa forma, podemos concluir que Norman se mantém fixado à fase edípica, mas diante da impossibilidade de ter a mãe como objeto de desejo, passa a identificar-se com a figura materna que se transforma em uma de suas duas personalidades”
Hitchcock finaliza o filme com a imagem de Norman detido em uma sala da delegacia e a voz em off da Sra. Bates dizendo que não poderia matar uma mosca, enquanto um mosquito passeia nas mãos dele. Um plano americano começa a centralizar o rosto de Norman que gradualmente e muito sutilmente se funde com a caveira da mãe e de uma cena em que o carro de Marion é dragado do pântano, emoldurado com a minimalista e contundente música, orquestrada com apenas cordas, de Bernard Herrmann.
No close que temos de Norman nesta última cena ele esboça um sorriso malicioso, tal como Marion fez quando dirigia na estrada. Este sorriso misto de vitória-vingança é como se a mãe de Norman estivesse finalmente punindo seu filho pelo matricídio, já que agora ele será internado em uma prisão psiquiátrica, talvez para sempre.
Figura 84: Sorriso de vitória de Norman e Marion.

Após a pós-produção e finalização do filme Hitchcock estaria empenhado em vender o seu filme para ser exibido com uma estratégia de marketing em que ele usa a sua imagem e fama de diretor e mestre do cinema macabro e de suspense para promove-lo (fama que adquiriu como nenhum outro diretor de Hollywood ou do cinema mundial, através de seus filmes, programas de TV, série de publicações de contos de horror e suspense que levava o seu nome na capa). Hitch chegou a fazer uma reprodução sua de papelão, em tamanho real, juntamente com uma placa informando ao público que só poderiam entrar na sessão de Psicose apenas no início do filme. Isto ajudou a criar mais ainda uma áurea de mistério e atração sobre sua nova película. Com uma publicidade tão original e bem bolada, fora os elogios da crítica e o boca-a-boca do público seu drama de horror acabou por superar até mesmo Intriga Internacional, seu filme mais rentável até o momento. Psicose deixou Hitchcock ainda mais famoso, rico (Hitch produziu e pagou o filme) e prestigiado. Sem dúvida alguma ele conseguiu calar a boca dos jornalistas que diziam que ele deveria se aposentar, e ficou muito satisfeito com ele mesmo, já que considerava Psicose um triunfo técnico.
Nas entrevistas do livro Truffaut/Hitchcock, o diretor revela que este filme é uma vitória para o cinema como arte. Porque privilegia a direção cinematográfica como nunca foi feito em outro filme da história até o momento, já que o enredo não era cativante ou tinha méritos humanistas, os personagens eram banais e prosaicos (a não ser Norman), que tinha sido produzido com um teto de baixo orçamento e equipamento leve usado na TV, com câmeras dolly e fotografia em preto e branco. Ele disse que fez Psicose para pessoas como ele e Truffaut, diretores que acreditam que o cinema é uma forma de arte e de contar histórias de uma forma mais rica do que qualquer arte. Este triunfo técnico o encheu de orgulho. Infelizmente para os apreciadores da arte de Hitchcock não conhecemos muito o homem por trás da câmera. Nestas entrevistas que ele concedeu para Truffaut, Rohmer, Chabrol, Rivette ele nunca falou sobre sua vida pessoal e sobre o que ele pensava sobre a vida. Esta postura, tal qual o seu modo de vestir sempre com um terno impecável camuflou o mistério que escondem suas obsessões, fetiches, amores e seu passado familiar (infância, adolescência). Tudo o que podemos saber sobre sua vida pessoal esta nos códigos e signos de seus filmes. Mesmos nos livros semi-biográficos de Hitchcock, dos autores Donald Spoto (Art Of Alfred Hitchcock ,Fascinado pela Beleza - Alfred Hitchcock e Suas Atrizes , O Lado Escuro do Gênio) e Stephen Rebello (Alfred Hitchcock e os Bastidores de Psicose) as revelações são partilhadas pelos seus colegas de trabalho e amigos e alguns familiares depois de sua morte. Talvez este silêncio reforçou a maneira de Hitchcock ser compreendido apenas através de sua arte, e de certa maneira, isto aconteceu quando os jovens jornalistas e futuros cineastas da Nouvelle Vague o procuraram para entrevistas e escreveram diversos artigos e análises de seus filmes. Ele sentiu esta cumplicidade e de que sua obra estava finalmente estava sendo compreendida, não apenas como um mestre do cinema, mas como um autor profundo e rico como Bergman e Murnau. E como já dizia seu admirador o filósofo e psicanalista Zizek: Hitchcock tem muito a ensinar a própria psicanálise.
Figura 85: Hitchcock alertando sobre a hora da entrada do público no pôster de Psicose.

LIVROS SOBRE HITCHCOCK





Figura 86: O maravilhoso livro, Bíblia do Cinema, Hitchcock/Truffaut Entrevistas
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vertigo, Intriga Internacional e Psicose foram os filmes foco deste estudo sobre o Complexo de Édipo na obra de Hitchcock, mas que poderia se estender em mais dois filmes subsequentes: Os Pássaros (1963), e Marnie, Confissões de uma Ladra (1964), ambos com a atriz Tippie Hedren, que foi fruto de obsessão e fetiche de um diretor que gostava de moldar suas atrizes para representar um ícone feminino preservado em sua mente ou inconsciente. Para conhecer mais detalhes sobre estes dois filmes existem revelações até sórdidas sobre como Hitchcock usava e até torturava seus modelos de obsessão no livro de Donald Spoto: Fascinado pela Beleza - Alfred Hitchcock e Suas Atrizes.
Quem tiver maior interesse em conhecer as incríveis histórias sobre o making off desta obra-prima de terror uma boa dica de leitura é do livro de Stephen Rebello “Alfred Hitchcock e os Bastidores de Psicose”.
Também aconselho assistir as versões de Vertigo com comentários de áudio de William Friedkin (diretor de O Exorcista) e os comentários de áudio de Psicose com o autor Stephen Rabello, encontrados nas versões em bluray.
Indico também o livro do autor argentino Noel Sinsolo que analisa diversos filmes de Hitchcock e o primeiro livro sobre o mestre, escrito por Eric Rohmer e Claude Chabrol e não poderia faltar é claro a bíblia para todos os futuros cineastas que querem se aventurar nesta arte, o livro Hitchcock/Truffaut Entrevistas.
Para aprofundamento psicanalítico, filosófico, semiológico existem diversas dissertações e teses de mestrado e doutorado sobre o mestre do suspense, além de livros dedicados a análise psicanalítica de seus filmes por diversos autores, entre eles o meu favorito,Slavoj Žižek.

Figura 87: Hitchcock na pesquisa de seu próximo filme após Psicose.
Hitchcock e Alma
(Este livro é dedicado aos dois)

Figura 88: Alma, companheira de Hitchcock, no amor e no trabalho, conhecida como a maior colaboradora em sua obra que sempre dava a palavra final nos seus projetos e roteiros, além de contribuir muito com a montagem e pós-produção de seus filmes. Sem Alma não existiria esta obra maravilhosa que foi construída a quatro mãos.

Foto do autor no Museu de Figuras de Cera em Petrópolis (Janeiro de 2018)
Sobre o autor:
Iury Salk Valentim Rezende (58 anos na publicação deste livro em uma única edição)
Residente em Juiz de Fora, Minas Gerais, funcionário público municipal na área da Educação, produtor cultural (Contribuiu com a organização de algumas mostras em Juiz de Fora, durante o período de 1993 a 2004 – UFJF- Cineclube Carriço). Um dos fundadores do Cineclube Luzes da Cidade (1994- em atividade). Colecionador de filmes, discos, livros e objetos colecionáveis (Action figures, Estátuas, e diversos itens colecionáveis relacionados ao mundo do cinema e quadrinhos). Tem um canal no youtube onde disponibiliza mais de 330 vídeos para visualização e apreciação dos internautas, que são produções domésticas sobre sua coleção, homenagens, rankings e listas de melhores filmes.
Tem uma companheira, Terezinha de Jesus M N Costa, há mais de onze anos. Eu e Terezinha somos pais de três gatinhos maravilhosos e fofos (Afrodite, Íris e Zeus).
Amante do Cinema há mais de 50 anos e o primeiro diretor e filme que lhe chamou atenção e o fez se apaixonar por esta arte foi o filme Intriga Internacional de Hitchcock.
Este ensaio foi escrito e montado, formatado em fevereiro de 2020.
as fotos são lindas e são essenciais para melhor compreensão da discussãoapresentada
Super interessante está análise. Excelente trabalho