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Coringa (2019)

Coringa é o filme do ano. Digo que sim.

Porque? As razões são muitas e todas contribuíram para tornar este filme amargo, de estética e tema desagradável, que conta a gênese de um dos maiores vilões da cultura pop em um drama perturbador, visceral, uma viagem ao Inferno sem ticket de volta.

Primeiro é necessário comentar sobre o background político, social, econômico da Gothan do final dos anos 70 e início dos 80, que na verdade é a mesma de New York deste período que foi celeiro para gerar obras primas do cinema estadunidense. É interessante que no filme não tenha nenhuma referencia cronológica direta, como insert de datas que revelam o ano em se desenrola a história de Joker, mas sim referências pontuais como outdoors e painéis luminosos de cinemas.



A década de 70 nos EUA, principalmente em Nova York, foi um caldeirão pronto para explodir. Protestos, escândalos políticos (Watergate), crise econômica (combustível, desemprego), crescimento do consumo de drogas(boa parte liberadas pelo próprio governo para desmantelar organizações de esquerda como os Panteras Negras), guerra entre as famílias da Máfia,Guerra do Vietnã(a guerra suja), luta pelos direitos civis.

Em Nova York, a classe média alta abandona a cidade para viver nas cidades satélites, ou em subúrbios burgueses bem afastados a partir dos anos 60 (é só lembrar-se da série Mad Men que mostra esta realidade). Manhatan é ocupada por desempregados, viciados, trabalhadores de classe média baixa, pobres, mendigos, prostitutas, hippies undergrounds. A pornografia e a prostituição explodem numa proporção nunca vista antes. Todo este panorama esta exposto como contexto poderoso em filmes deste período, como Caminhos Perigosos (1973), O Espantalho(1973)(este, apesar de ser ambientado na Europa, os dois personagens disfuncionais são nova-iorquinos em crise), Serpico(1974), Um dia de Cão(1975), Rede de Intrigas(1976) e principalmente Taxi Driver (1975) e O Rei da Comédia (1982), estes dois que foram usados como pilares fundamentais para a construção dramática do personagem Joker, ao fundir os personagens Travis Bickle e Robert Pupkin em um só.




O documentário HiperNormalização (2016) de Adam Curtis é também ótima fonte para entender este período cultural e político, quando surge neste panorama a figura de Donald Trump, um espertalhão, filho de emigrantes, que propõe ao prefeito de Nova York em 1976, um ambicioso projeto de reconstrução imobiliária para ricos e classe Média Alta. Na época, com a evasão desta população para o subúrbio, deu lugar a ocupação da cidade pela classe média baixa, pobres e do lumpesinato.As arrecadações de impostos caíram drasticamente, colocando a prefeitura de Nova York sem recursos e obrigada a cortar os programas sociais e a manutenção de setores como educação, saúde e segurança, reforçando todo o quadro que citei anteriormente de Nova York/Gothan.

A figura do empresário visionário como Donald Trump,que quer expulsar os pobres, classe média baixa, para dar lugar aos ricos (que faz lembrar a velha frase dos Senhores da Humanidade em “A Riqueza das Nações”:...para nós tudo, para o resto nada”, remete diretamente ao personagem de Thomas Wayne, o milionário empresário, pai do futuro Batman(Bruce neste filme é uma criança), que se candidata a prefeito de Ghotan, com a mesma plataforma de Trump, também similar ao candidato de Taxi Driver, de perfil conservador, moralista, elitista e neo-liberal.

Thomas Wayne faz uma declaração preconceituosa e classicista, após ser perguntado sobre a morte de três yuppies bolsominios por um palhaço misterioso, associando o criminoso com o resto da população miserável de Gothan, como palhaços e perdedores. Esta declaração provoca a ira desta população, que raivosos respondem com manifestações contra Wayne, vestidos de palhaços. Esta inserção mostra bem o conservadorismo da mídia, da política e dos altos empresários como Trump, que ilustra particularmente um incidente real, que aconteceu no início dos anos 80. Trump pagou uma fortuna em publicidade nos jornais para que forçasse a legalização da Pene de Morte em Nova York, para que punissem cinco rapazes negros e latinos pobres que foram injustamente acusados de estuprarem uma jovem executiva branca, membro da elite de Wall Street. Este episódio foi transformado na maravilhosa mini-série da Netflix “Olhos que Condenam”.



Outra menção que destaco, que tem paralelos com Joker, é uma genial cena do filme Rede de Intrigas (1976), que acontece entre o messiânico ancora de telejornal, interpretado pelo ator Peter Finch e o empresário corporativo que compra a rede de TV em que Finch trabalha. Nesta sequencia, o empresário, interpretado por Ned Beatty, tenta convencer o esbugalhado Finch sobre o atual controle das corporações internacionais sobre a política, religião, costumes, Poder midiático, cultura e até da sexualidade das pessoas, em que o empresário, ou grupo de empresários é o verdadeiro e atual Deus nestes tempos, invisível, feroz, ganancioso e patriarcal.O empresário diz que na América, não há mais lugar para o New Deal (política social que gera empregos), esquerda política, Hippies ou feministas, o novo evangelho é da Schell, da IBM, Nestle, Coca Cola, etc. O personagem de Finch é interessante e um pouco alter ego de Joker por assumir um messianismo dos ultrajados, dos ignorados, dos invisíveis, dos fracassados. Ele pede em rede nacional para que todos desliguem a TV no horário nobre do telejornal (tipo Jornal Nacional), que segundo o personagem só diz mentiras e manipulam a opinião pública, e pede para todos irem para as suas janelas e gritarem: “Eu não aguento mais... é dizer tudo o que estão sufocando”. Este discurso foi um estopim coletivo muito parecido com o do filme Joker, quando milhares de desempregados, perdedores e ofendidos pela arrogância do candidato Thomas Wayne, saem nas ruas vestidos de palhaços. Infelizmente este filme, a obra prima de Sidney Lumet e do roteirista e autor Paddy Chayefsky, perderam o Oscar para o mediano, otimista, alienante e típico filme de herói individualista, “Rock o Lutador”. Na verdade o próprio público já estava ficando cansado de tantos filmes realistas, reflexivos, adultos e pessimistas como os produzidos pelos maravilhosos diretores dos anos 70, como Martin Ritt, Lumet, Scorsese, Coppola, Cassavetes, para dar lugar ao cinema escapista de blockbuster como Tubarão, Star Wars e Rock, o Lutador.



O povo estadunidense também cansado de ser chamado de loser (fracassado), invisível e desprezado, passou a frequentar ao circo de luzes e batidas eletrônicas, palco para o narcisismo, auto-promoção e o esvaziamento político ideológico. O belo filme: “Embalos de sábado a noite” faz um raio X sobre o típico frequentador das discotecas da época, que brilha na noite, mas é inseguro e perdido durante o dia-a-dia de labuta e falta de perspectiva econômica e social.

Em Joker, o personagem Arthur Fleck (Joaquim Phoenix) um aspirante a stand-up, que trabalha como palhaço na publicidade de lojas comerciais, sofrendo de distúrbios neurológicos (é obrigado tomar medicações pesadas que não consegue pagar, mas adquiri através de benefícios sociais), que faz que ele dê gargalhas, em momentos inapropriados e que não representam o que realmente sente.Também tem que cuidar da mãe doente, e a única pessoa que tenta, mas sem sucesso, em desabafar suas angústias é a assistente social.



Ele é o próprio mosaico-representação de todos os personagens do cinema nova-iorquino dos anos 70, interpretados por Al Pacino, Peter Finch, Travolta, Gene Hackman e principalmente Robert De Niro, que também participa de Joker. Seu arco dramático, sua evolução psicótica, seu desenlace infernal também nos faz lembrar de duas Obras primas de Stanley Kubrick: “Laranja Mecânica” e “O Iluminado”, que são verdadeiros ensaios sobre a loucura. Phoenix esta assombroso neste papel que certamente será lembrado com uma das maiores atuações da história da sétima arte, como Brando em “Um Bonde Chamado Desejo” e “O Último Tango em Paris”, Jack Nicholson em “Um Estranho no Ninho” e o “Iluminado”; Ledger em “O Cavaleiro das Trevas”; Al Pacino em “Um Dia de Cão” e “Serpico”. Lemon em “Sonhos do Passado”; personagens viscerais, paroxistas, sublimes e realmente muito loucos.



Em determinados momentos Phoenix lembra também a maravilhosa atuação de James McAvoy na multi-personalidades que encarnou nos filmes de Shyamalan: Fragmentado e Vidro. Em Joker, Phoenix se multifacetada em vários Jokers, em criança (a que não teve), dançarino (o que realmente queria ser, não o palhaço), gay(sexualidade reprimida) e serial Killer(de todas as vezes que foi abusado, humilhado, pisoteado, ignorado, e nunca reagindo, a não ser a histérica ofegante risada).




Este Joker de Phoenix nunca esteve tão próximo da obra que influenciou na criação do personagem, a do Romance “O Homem que Ri” do escritor humanista e pensador socialista Victor Hugo, mestre em criar personagens dignos, humildes, sofredores e que transbordam humanidade, mesmo sendo párias deformados.

Ao mesmo tempo, temos este personagem que é tímido, doce, frágil, fantasista, admirador de Chaplin e Fred Astaire, que se transformar num monstro psicótico e alucinado, sem retorno, fruto de uma sociedade também doentia, representada em obras como as que citei. Sua transformação é visualizada no trabalho cênico assustador de rugas crispadas que se contorcem como máscara de loucura e crueldade, assim também como a sua postura corporal quebrada e doída, na magreza que Phoenix se submeteu para a criação do personagem (emagreceu 25 kilos). Também é notável seu andar de títere depressivo e encurvado, que sobe no final de todos os dias a escadaria de Sísifo em rumo à solidão e a companhia de uma mãe lunática.



Esta transformação alquímica também é representado na maravilhosa fotografia de Lawrence Sher e na direção de arte de Mark Friedberg, que recriam o ambiente de desolação e sujeira da Gothan/Nova York, que funciona quase como um personagem do filme. Em alguns momentos chaves em que Arthur Fleck se transforma em Joker, a iluminação e Câmera de Sher permitem a saturada exposição de difração da câmera, cores prismáticas selecionadas nas cores que caracterizam a indumentária e maquiagem clássica do personagem: verde, roxo, rosa, que dançam na sua silhueta enlouquecida. A trilha sonora de Hidur Guônadóttir é um triunfo a parte, expressionista e de uma emocionalidade dodecafônica. As canções extra-diegéticas e diegéticas também casaram perfeitamente com o desenrolar e o subtexto psicológico crescente do personagem. Canções como Smile, Send in the Clowns, SlapTha Bass, Evereybody Plays the Fool, White Room (escolha bem Scorseseana) e That’s Life emolduram o delírio, a sedução, a tristeza, a ironia, o patético, a loucura e a singeleza de Joker. A atuação dos demais atores foram perfeitas também.



A direção de Todd Philips surpreendeu, pois não foi só porque teve um roteiro preciso, enxuto e inspirado,e das magníficas influências que o inspiraram, mas também por ser ousado, inovador, e dentro do universo das HQ foi completamente revolucionário, criando um patamar que provavelmente nunca será igualado ou retomado.

Joker é um neo-noir hardcore, uma viagem nietzschiana ao abismo, um verdadeiro filme de arte, na pré-produção, produção e pós-produção (seus cartazes são lindos, o trailer é um dos mais bonitos que já assisti), uma obra que tem naturalmente seus detratores e inquisidores, mexeu num vespeiro, visitou o Inferno que cobra um ingresso do público para o Caronte, um público de adolescentes típicos do mainstream e de blockbusters. Ganhou prêmios e possivelmente ganhara o Oscar de roteiro, Direção de Arte, Fotografia, Trilha sonora, Talvez Direção, claro para Phoenix, mas não ganhará o de melhor filme, porque na Hollywood de hoje não reprisará os Prêmios que concedeu a filmes malditos como Um Estranho no Ninho e Perdidos na Noite.



Parasita (2019), que considero ao lado de Joker (2019), um os dois melhores filmes de 2019 e também deste século, ambos com temática similares e que denunciam e atacam o neo-liberalismo, a alienação política e a hiper-naturalização fantasista de nossa era, frutos do individualismo, perda de direitos, massacre das organizações sindicais e consumismo desenfreado. Os dois filmes não elaboram respostas, mas expõe este quadro lastimável e decadente da sociedade moderna, principalmente do lumpesinato e dos que não tem voz, seja na mente de um desajustado e doente mental (Joker) e uma família disfuncional (Parasita). Estes filmes são como a Esfinge que lança uma problemática que os líderes políticos progressistas, os ambientalistas, sociólogos, cientistas políticos, profissionais da saúde mental, ONGs tem que se posicionar e responder, para não serem devorados por este monstro do pós-modernismo e pela ganância monstruosa do neo-liberalismo. São filmes que além da perfeição técnica e artística são marcos sociológicos que representam, como um raio X, e propõe este desafio e questionamento temporal, existencial e político como obras do passado como: Crime e Castigo, Hamlet, A Divina Comédia, Cidadão Kane, Guernica, Vertigo e outras obras que ficaram eternas pela suas enormes contribuições.

Portanto é o filme do ano, talvez da década, talvez do milênio.



Iury Salk.

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