Contato Visceral (2019)
- Iury Salk Rezende
- 26 de fev. de 2020
- 4 min de leitura

Filme do diretor iraniano/britânico Babak Anvari, realizador do longa de estreia, premiado no BAFTA “Sobre a Sombra (2016)”. Neste segundo filme de terror, o anterior é excelente, Babak faz um ensaio sobre um Príncipe Encantado vazio, interpretado pelo galã inglês Armie Hammer (de Chame pelo seu Nome), assim também como da nossa sociedade contemporânea, obcecada por tecnologia e redes sociais, e armada de celulares como quase única forma de interagirem socialmente. Através desta tecnologia promovem bullying e se expressam, exercitando um narcisismo patológico. Durante o filme não faltam cenas em que transeuntes filmam com seus celulares cenas de violência ou de fragilidade, mas se o mundo fosse normal ou menos doentio, estas pessoas filmadas seriam socorridas.

O diretor se apoia em alguns cânones do Cinema como orientação estética e criação de atmosfera, como David Cronenberg, David Lynch e Roman Polanski, principalmente pela sua trilogia do apartamento. A trama lovecraftiana, anunciada em um clima de decadência, muito calor, baratas em todos os ambientes e principalmente por uma trilha sonora bem imersiva e cavernal.

A história é bem simples, Hammer faz um bartender, Will,que trabalha em um bar de Nova Orleans ou alguma outra cidade da Lousiana, e recolhe um celular no chão no final do expediente. Através deste celular, passa a se comunicar com um jovem, que juntamente com outros, abriram um portal metafísico, entrando em contato com seres “superiores”(ou os antigos como sugere a influência Lovecraftiana). Will passa a sofrer de algumas alucinações, assim como a sua companheira, uma mestranda que tem como núcleo de sua pesquisa o poema “Os Homens Ocos” de T. S. Elliot.

Para reforçar iconograficamente o ambiente e sub-texto do filme, Babak utiliza quadros como o pôster do filme Blow Up de Antonioni, como forma de reforçar a ideia de incomunicabilidade, vazio e narcisismo do personagem central, além de corroborar a prisão tecnológica em que vivemos, e só conseguimos realmente perceber as coisas ou o mundo através de um instrumento tecnológico (celular/computador), como foi no filme de Antonioni(máquina fotográfica). Outros quadros também dão significado a perdição e prenúncio da queda do personagem, que também decoram o apartamento de Will, como uma ilustração renascentista de Adão e Eva, e uma cena gnóstica de William Blake. A própria tese de sua companheira também reforça o estado moral de Will, a do Homem Oco:
“Nós somos os homens ocos Os homens empalhados Uns nos outros amparados O elmo cheio de nada. Ai de nós! Nossas vozes dessecadas, Quando juntos sussurramos, São quietas e inexpressas Como o vento na relva seca Ou pés de ratos sobre cacos Em nossa adega evaporada Fôrma sem forma, sombra sem cor Força paralisada, gesto sem vigor; Aqueles que atravessaram De olhos retos, para o outro reino da morte Nos recordam — se o fazem — não como violentas Almas danadas, mas apenas Como os homens ocos Os homens empalhados. II Os olhos que temo encontrar em sonhos No reino de sonho da morte Estes não aparecem: Lá, os olhos são como a lâmina Do sol nos ossos de uma coluna Lá, uma árvore brande os ramos E as vozes estão no frêmito Do vento que está cantando Mais distantes e solenes Que uma estrela agonizante. Que eu demais não me aproxime Do reino de sonho da morte Que eu possa trajar ainda Esses tácitos disfarces Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas E comportar-me num campo Como o vento se comporta Nem mais um passo — Não este encontro derradeiro No reino crepuscular”
Acho que o filme poderia ser mais bem desenvolvido, já que trata sobre um tema universal e reflexivo. O diretor não se apoia em truques fáceis ou clichês do cinema contemporâneo de horror como jumpscary. Foi cuidadoso com a iconografia, direção de atores, trilha sonora, fotografia, mas seu roteiro foi subdesenvolvido, como por exemplo o próprio signo motivo, que são as chagas, feridas, o título original é “Wounds”, que daria margem para um arco escatológico a maneira de Cronemberg, como em sua obra-prima Videodrome. Mas parece que o diretor ficou um pouco divido na construção do personagem e seu arco dramático, entre o horror fantástico e o naturalismo. Se este roteiro estivesse nas mãos de Polanski o desenvolvimento seria mais aprofundado, e o misto entre horror sobrenatural e realidade seria mais vertiginoso e dramático. Mas apesar das falhas evidentes Wounds é um filme reflexivo e capaz de prender a atenção do público. Will é um típico personagem contemporâneo, como milhões espalhados no mundo, vazio, preocupado apenas com a própria imagem, narcisista, alienado, que busca heróis, que geralmente representam a sua própria personalidade e valores(Trump, Moro Bolsonaro). Will é um vaso ideal para ser ocupado por um “Ser Superior”, assim como os milhões que já foram ocupados na Alemanha Nazista, cometeram crimes, mas se sentiram imunes de culpa, como explica Freud através de sua análise sobre a dinâmica de grupos.

Outra música que também ilustra bem este personagem é nowhere man dos Beatles:
“Ele é um autêntico homem de lugar nenhum
Sentado em sua terra de lugar nenhum
Fazendo todos os seus planos inexistentes
Para ninguém
Não tem um ponto de vista
Não sabe para onde está indo
Ele não é um pouco parecido com você e eu?
Homem de lugar nenhum, por favor escute
Você não sabe o que está perdendo
Homem de lugar nenhum, o mundo está sob o seu comando
Ele é tão cego quanto ele pode ser
Só vê o que quer vê
Homem de lugar nenhum você consegue me ver?
Homem de lugar nenhum, não se preocupe
Leve o seu tempo, não se apresse
Deixe isso tudo até alguém
Te dê uma mão
Não tem um ponto de vista
Não sabe para onde está indo
Ele não é um pouco parecido com você e eu?
Homem de lugar nenhum, por favor escute
Você não sabe o que está perdendo
Homem de lugar nenhum, o mundo está sob o seu comando
Ele é um autêntico homem de lugar nenhum
Sentado em sua terra de lugar nenhum
Fazendo todos os seus planos inexistentes
Para ninguém
Fazendo todos os seus planos inexistentes
Para ninguém
Fazendo todos os seus planos inexistentes
Para ninguém”
Encerro com a frase do grande Umberto Eco: “As redes sociais deram voz aos imbecis”.

Iury Salk, 31/10/2019
super show! parabéns