Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (2020)
- Iury Salk Rezende
- 23 de abr. de 2020
- 6 min de leitura

O filme da Pixar, Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica, dirigido por Dan Scanlon, que também contribuiu no roteiro, conta a história de dois irmãos elfos adolescentes, criados apenas pela mãe. O pai desapareceu quando os jovens eram bem novinhos e vivem em um mundo povoado por criaturas fantásticas, mas que a magia e os poderes de cada criatura foram abandonados e reprimidos, condizente com a sociedade humana de nossos tempos. Os dois irmãos são bem diferentes. O mais jovem é muito tímido e inseguro e com uma enorme nostalgia pelo pai que mal conheceu. O outro irmão, um pouco mais velho, é autoconfiante e apegado ao mundo mágico que foi abandonado e que conhece apenas pelos livros de história e jogos RPG. No dia do aniversário de Barley, o mais jovem, ele recebe um cajado de presente do Pai, que estava guardado para ser entregue ao garoto quando completasse 15 anos. O irmão Ian reconhece o cajado como um instrumento mágico usado pelos bruxos de antigamente e procura outra peça dentro do embrulho, um cristal, que dotaria o cajado de poder. Junto com o cristal Ian encontra também um papel com orientações de como deveria ser utilizado o cajado, revelando que o mesmo daria poder de ressuscitar o pai durante um dia inteiro. Os dois jovens ficam animados e começam a fazer o feitiço, mas devido à insegurança de Barley e o estado atabalhoado de Ian o feitiço resultou incompleto e o pai só foi materializado pela metade, dos pés até a cintura.




Até o final deste episódio fomos apresentados por outros personagens coadjuvantes, como o namorado da mãe de Barley e Ian, Um centauro imenso que trabalha como policial, controlador e obsessivo por regras, apesar de ser carinhoso com os dois meninos. Este personagem causa um imenso estranhamento pelo seu porte eqüino e usar uma patrulha como qualquer policial. Os demais personagens episódicos que aparem na trama também causam estranhamento, como uma Manticora, uma criatura mitológica, semelhante às quimeras, com cabeça de homem, três afiadas fileiras de dentes de tubarão e com voz trovejante que trabalha como garçonete subserviente e atrapalhada. Também temos uma gang de fadas motoqueiros agressivos que lembram o Hell angels.




O estranhamento maior é que estas criaturas, associadas às lendas de Fantasia e Horror, são agora como pessoas comuns, vivendo em uma sociedade consumista, capitalista, que se sujeitam a um trabalho precarizado, e se alimentam de fast foods industrializados e de pouco valor nutritivos. Todo este ambiente lembra o conceito de “A Sociedade Hipermoderna”, termo cunhado por Lipovétsky (2006), compreende uma relação do homem com o consumo que se estabelece através da efemeridade e do hedonismo, levando o homem ao consumo excessivo em busca de novas experiências, através da utilização, pelo marketing, do construto valorativo da sociedade, a fim de firmar-se no mercado consumista. No entanto, essa busca desenfreada leva o homem hipermoderno a experienciar crises existenciais, especificamente sensações de vazio e frustração e desenvolvimento de neuroses noogênicas, um estado que se chama "frustação existencial".
Esta angustia existencial é experimentada pelos dois irmãos órfãos de pai. Eles anseiam em conhecer a figura paterna, que possam traçar um modelo a ser seguido no processo de individuação, autoconhecimento e busca pela essência existencial. Esta busca pelo pai, ou busca existencial pela essência foi tema filosófico de vários pensadores, passando por Søren Kierkegaard, Nietzsche, Martin Heidegger e finalmente Jean Paul Sartre, que é mundialmente conhecido por sua afirmação de que a existência precede a essência, significando que só se pode entender o ser humano com base em suas ações no mundo.
Estas ações serão levadas na prática pelos dois irmãos quando o cristal do cajado se quebra e será necessário adquirir um novo cristal mágico, para poder materializar o pai completamente, antes de acabar às 24 horas de duração do feitiço. Esta jornada, que considero uma busca pelo autoconhecimento e pela essência existencial, levara aos dois jovens em uma aventura em que serão testados os seus limites, assim como a descoberta do potencial inerente aos dois, que foram adormecidos por uma sociedade consumista, conformista e zumbificante, que suga a potência e a consciência existencial.
Um filme que me vem a mente, em termos de semelhanças com esta fábula juvenil é o clássico sci-fi de horror “Eles Vivem” (1988) de John Carenter. Em uma análise que faz parte do documentário do filósofo esloveno Slavoj Žižek chamado ‘The Pervert’s Guide to Ideology’, Žižek faz uma analogia do uso dos óculos escuros no filme com uma momentânea abstinência de nossas ideologias. Ideologias essas que, segundo ele, nos dão a falsa impressão de liberdade, mas que na realidade são impostas pelo sistema, pela mídia e por quem está no poder. Nas palavras de Žižek, “Quando você coloca os óculos, você vê a ditadura dentro da democracia. É a ordem invisível que sustenta sua aparente liberdade”.

Cena de "Eles Vivem"
O Cristal encantado que será o objetivo do arco dramático dos dois jovens personagens também tem um significado de busca existencial, já que o Psicanalista Carl Gustav Jung muitas vezes associou a simbologia do Cristal ao próprio Self, centro regulador de nossa psique, como também ao autoconhecimento. Segundo Jung, em seu livro o Homem e seus símbolos:
"Muitas pessoas não resistem ao impulso de apanhar pedras de cor ou forma pouco comuns para guardá-las, sem saber por que o fazem. É como se as pedras contivessem um mistério vivo que as fascina. Os homens colecionam pedras desde o início dos tempos, e aparentemente admitiram que algumas delas são receptáculos de força vital, com todo o seu conseqüente mistério. Os antigos germânicos, por exemplo, acreditavam que os espíritos dos mortos continuavam a existir nas lápides dos seus túmulos. O costume de colocar pedras sobre os túmulos deve ter surgido da idéia simbólica de que algo eterno do morto subsiste, e encontra nas pedras a sua representação mais adequada."
A trajetória dos dois irmãos vai em direção ao Cristal, através de uma mapa que fazia parte da coleção de livros exotéricos de Ian. Nesta jornada os dois entram em conflito em alguns momentos, quando tem que decidir se seguiriam o mapa pela via expressa (sugestão de Barney), ou por um atalho considerado perigoso e tortuoso (sugestão de Ian). Eles decidem pelo caminho conservador, que revela a prisão do irmão mais jovem as convenções conservadoras do mundo moderno em oposição ao mundo mágico de Ian. Mas quando são perseguidos pela policia pela tumultuada rodovia, acabam em optar pelo caminho de Ian. Durante esta trajetória de busca, perseguição e fuga, ambos os irmãos passam a agir conjuntamente e utilizando estratégias e poderes mágicos, que eles mal conheciam ter, principalmente o mais novo, Barney. Vários símbolos de transição e superação como pontes inalcançáveis, grutas e caminhos obscuros, são obstáculos a serem vencidos pelos irmãos que os distanciam das personalidades obliteradas antes desta jornada.


Por fim eles chegam ao objetivo final, ao encontro do esconderijo do Cristal, curiosamente ficava no centro da cidade que eles viviam. A jornada levou para o mesmo lugar. O Cristal estava escondido em um monumento da Era Mágica, um Dólmen no centro da praça principal. Para Jung a jornada em círculo, ou a volta em si mesmo, é representado em signos do autoconhecimento como o Oroboro (A cobra em forma circular que come o próprio rabo) ou as mandalas. A mandala para Jung significa um suporte para a transformação e crescimento interno no indivíduo para alcançar a totalidade. Segundo ele, as mandalas se mostravam como tentativas do inconsciente de buscar uma cura para a nossa forma interna. Com isso, a nossa psique poderia ser restaurada e colocada em ordem. Os orientais carregavam uma forma única que influenciou a percepção da mandala para Jung. O terapeuta pontuava que os orientais tinham a motivação de fazer um encontro com Deus. Para isso, o movimento de centralização era fundamental na construção de suas mandalas.
Com isso, o encontro com o Self, o centro, daria o encontro para a própria essência. Nesse caminho, visualizaríamos por meio da mandala a nossa verdadeira natureza longe dos olhos físicos.
Como ainda estavam sendo perseguidos pela polícia, os dois jovens são separados e apenas um deles, Ian, é que consegue terminar o feitiço e completar a materialização do pai. Como faltava apenas um minuto desta materialização, e Barney estava muito distante, ele só consegue ver o pai de costas e percebe em um último momento o pai abraçando Ian e dizer algumas frases que não conseguiu ouvir, devido à distância. Fica claro, que o irmão mais exotérico e próximo da cultura mágica, é que teve a oportunidade de entrar em contato direto do pai. Já Barney, como mais incrédulo e inseguro e arraigado no mundo moderno, não teve a mesma experiência mística e de autoconhecimento. Mas mesmo assim Barney fica feliz pela trajetória dos dois, que caminharam juntos nesta jornada de descobertas e na importância da irmandade e da solidariedade para combater o individualismo inerente a sociedade Hipermoderna.
O conhecimento de si mesmo é um caminho que também deve ser partilhado entre seus iguais. Não tem sentido buscar a essência em uma sociedade sufocada em consumismo vazio e conformismo político e social sem que possa ser também partilhado. No fim os irmãos se abraçam. Não só os dois conseguiram este feito. Vários que acompanharam nesta aventura, como o namorado centauro da mãe, que agora aceita sua condição animal, solta sua crina e cavalga pelas ruas, assim como a Manticora ciente de seus poderes e força magnífica, ruge com seus pulmões de Leoa. O autoconhecimento dos dois vai contagiando e se propagando pela cidade e vários moradores locais também começam a descobrir seus poderes e a utilizá-los de forma comunal.


Achei este filme da Pixar uma excelente fábula para as crianças que ainda podem, nesta sociedade estagnante e burguesa, realizar uma jornada em busca da essência.
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